E, de repente, começamos a ouvir, da sala de aula, uma
balbúrdia vinda da Rua das Laranjeiras, em frente ao colégio. Eram estudantes
do São Vicente de Paulo e do Sion, de todas as idades, que vinham descendo
desde a Rua Cosme Velho em direção ao centro da cidade, mais precisamente, a
Candelária. Era o tempo do impeachment de Fernando Collor, da geração dos
caras-pintadas. Vinham cantando. Pararam na porta e começaram a nos convocar
para nos juntarmos à pequena multidão. Ouvidos moucos. Assim como a balbúrdia
veio, passou. E nós, estudantes zelosos de nosso papel de estudantes, quer
dizer, estávamos ali para estudar, não para criar confusão e usar de
subterfúgios para matar aula, ora vejam que mané impeachment que nada, continuamos
a estudar, com o apoio incondicional do professor.
Eu tinha meus doze, treze anos e não tinha muita ideia
do que se passava além dos muros escolares, com a ajuda inestimável do corpo
docente. Mentira, à exceção do professor de História, excelente, possivelmente
minha inspiração para seguir o caminho que segui, a despeito do pouco caso e do
pouco apreço que a carreira de humanas, especialmente as Ciências Sociais e a
História, tinham junto à coordenação pedagógica e à direção. O importante era passar
para a UFRJ e, se possível, para os cursos de Medicina e Engenharia,
representação simbólica da ascensão social dos filhos e netos de imigrantes.
Era importante “ser doutor no país dos bacharéis”. Embora compreensível, também
inconcebível que houvesse menos entusiasmo por quem escolhesse cursos menos
prestigiados. Ai, essa mágoa que me corrói...
O fato é que a escola judaica era uma metáfora do
shtetl, pior, era uma metáfora do gueto voluntário num mundo cada vez mais
interconectado, com fronteiras cada vez mais fluidas, com o crescente fluxo de
informação que explodiu em seguida com o advento da Internet (quem se lembra
daquele barulhinho irritante da conexão discada?), com a liberdade individual
de flanar por tantos quantos espaços de identidade fossem necessários e (in)
suficientes, época em que descobri o blues no Circo Voador, a cerveja e o beijo
na boca. Época em que dei meus primeiros passos, ainda ressabiados, para fora
dos limites da “casa” aconchegante da comunidade, da mesmice, da pretensa ausência
de conflitos, espaço da proteção contra o Mal atávico e irremediável do
“outro”. Estávamos alheios ao mundo que
nos cercava, exilados em nossa própria cidade.
Havia uma orientação ideológica no sentido de
construir uma narrativa que reforçasse o caráter homogêneo da identidade
judaica, apartada do contexto histórico, uma narrativa que marginalizasse o
pensamento crítico, reflexivo do aluno a respeito de sua própria ideia do que é
ser judeu. O genocídio de seis milhões durante a segunda guerra mundial sempre
foi tratado como um evento judaico, reproduzido como um mantra, quase que
inexplicável, metafísico, fruto da maldade dos alemães, incompreensível à luz
da História, ritualizado anualmente com os relatos pavorosos de sobreviventes
de campos de concentração. Um destes sobreviventes, anos depois, reafirmou,
numa palestra em que estive presente, sua crença na excepcionalidade
qualitativa do holocausto judaico, afirmando que genocídios na África são
incomparáveis (leia-se: menos trágicos) com o “nosso”, estabelecendo uma
hierarquia subjetiva do sofrimento.
A mesma ausência de discussão acadêmica séria acontecia quando o tema era Israel. Na
verdade, não existia o tema Israel. Era um dado da natureza. Nunca se discutiu,
em profundidade, seja em História Judaica, seja em História Geral, o processo
de criação do Estado de Israel e os conflitos posteriores. Nunca se falou de
Territórios Ocupados, sempre se cantou o hino israelense no final da hora do
recreio. O posicionamento ideológico era, portanto, claro, nada imparcial.
Visão hollywoodiana de mocinhos e bandidos. Por outro lado, nos deliciávamos,
ano após ano, com as guloseimas distribuídas sempre pelo mesmo rabino e sua
esposa de peruca na época de Purim, a festa que comemora a salvação do povo
judeu das garras do sinistro Haman, o conselheiro do rei persa Assuero, casado
com a judia Ester. O rabino contava a estória e tirava, de um grande saco,
parecido com o do Papai Noel (bom, ele parecia o Papai Noel, com aquela barba e
o saco nas costas) saquinhos para cada um dos alunos contendo, invariavelmente,
uma caixinha de uvas-passa e a “orelha” de Haman recheada de geleia de morango.
A escola judaica que frequentei não me formou como
cidadão, muito menos contribuiu para a formação de minha identidade judaica baseada
na pluralidade de concepções que envolvem a definição do que é ser judeu.
Lamento muito ter chegado a esta conclusão. Paulo Freire foi preciso ao afirmar
que “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A
questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”. A orientação ideológica da escola não
contribuiu impediu a construção de um indivíduo crítico de seu entorno,
consciente de suas responsabilidades enquanto cidadão, pelo contrário, alheou
seus alunos de questões fundamentais da história brasileira como o golpe
militar de 1964, a tortura dos presos políticos, a compatibilidade entre ser
judeu e ser carioca e brasileiro, as inúmeras possibilidades de vivenciar a
identidade judaica e a identidade carioca e brasileira. O tema da diversidade
cultural e sexual. Zero. Nada. “Imparcialidade”. Ensino “objetivo”. Não havia
um diretório acadêmico dos estudantes.
Saí da escola judaica há vinte anos. Muita água passou
por debaixo da ponte, mas, alguma coisa
mudou?
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