“Dentro!”, “dentro!”, “dentro!”, gritavam todos os
meninos ao mesmo tempo assim que o sinal do recreio tocava pontualmente às nove
e meia da manhã. Lá pelas nove horas, já confabulavam sobre as equipes que
jogariam bola no campão, o ginásio da escola onde chegávamos através de uma
longa e tortuosa escada. No entanto, para garantir vaga nos dois times “dentro”,
quer dizer, que não estavam “na de fora”, portanto, com chances de jogar mais
tempo nos vinte e cinco minutos de descanso do enfado que eram as aulas de
matemática e português, era preciso gritar mais alto e antes que os demais, “dentro!”.
Muitos sequer comiam o lanche trazido de casa ou “esqueciam” de comprar a
fichinha no bar (sobre as fichinhas coloridas, objeto de desejo e sedução, ver a
primeira crônica destas reminiscências), preferindo usar os cinco minutos entre
o final do recreio e o reinício das aulas (talvez fosse esta a explicação do por
que o recreio terminar às nove e cinquenta e cinco da manhã, e não dez horas)
para beber água e lavar o rosto, empapados de suor do pescoço para baixo.
Quem não tinha interesse em jogar bola ficava pelos
pátios batendo papo, improvisando o futevôlei ou o “taco”, versão carioca do
beisebol norte-americano. Também jogávamos “bafo” com figurinhas autoadesivas
que faziam sucesso na época. Para quem não conhece o jogo: cada jogador colocava
na mesa figurinhas que não tinham mais interesse, mas que interessavam ao
oponente; tiravam “par ou ímpar”; o vencedor tentava ganhar o bolo de
figurinhas batendo as duas mãos sobre as figurinhas, em formato de concha, em
forma de “xis”, uma em cima da outra. O movimento criava um fluxo de ar que,
com sorte, fazia com que as figurinhas voassem e, se caíssem com o desenho para
baixo, eram ganhas. Lembro-me bem das prateadas do álbum dos Thundercats, lá
pelo final dos anos oitenta. Havia um colega de sala que era o terror, era todo
grandão e suas mãos, proporcionais ao corpo, engoliam facilmente nossas
figurinhas, dificilmente saíamos ilesos da batalha.
A Wikipédia define didaticamente o “jogo do bafo”:
“O jogo do bafo é uma brincadeira muito comum entre os colecionadores
de figurinhas. A brincadeira se chama jogo do bafo, pois o bafo (vento)
provocado pelas mãos durante a batida no monte de figurinhas é que vira as
figurinhas. O objetivo do jogo é ganhar figurinhas de um determinado álbum
de cromos e as regras são bastante simples. Dois ou mais jogadores formam
uma roda onde todos ficam sentados ao redor das figurinhas que estão sendo
disputadas. Cada jogador coloca uma quantidade de figurinhas combinada entre os
participantes no centro. O monte de figurinhas é agrupado e é sorteada a ordem
de ação dos participantes. Acertada a ordem de participação, um jogador por vez
arruma o monte, colocando todas as figurinhas viradas de frente e bate com a
mão no monte de figurinhas. As figurinhas que virarem do avesso são recolhidas
pelo participante que acabou de bater. O próximo participante arruma as
figurinhas que restaram e bate no monte, retirando aquelas que conseguiu virar.
O processo continua até que todas as figurinhas em jogo sejam viradas do avesso
e retiradas do monte, mas se as figurinhas colarem na mão do jogador ele terá
que bater a figurinha sozinha fora do bolo de figurinhas.”
Quando entramos no segundo grau, aos quinze anos, nos
foi permitido sair da escola para comprar lanche. Eu era fã de um salgado
chamado “saladinha” que, de saladinha não tinha nada, era uma massa recheada de
uma espécie de maionese, temperos e pequenos pedaços de cebola, pimentão e
tomate. Só de lembrar fico com água na boca. A lanchonete Niné desapareceu há vários
anos, hoje é uma loja do Subway. Achávamos
graça no vozeirão do senhor que nos atendia, sotaque italiano. Se não na Niné,
atravessávamos a rua e comprávamos picolé ou amendoins envoltos em chocolate ou
qualquer besteira do pipoqueiro que ficava parado na porta da escola. Ah, e por
falar em pipoqueiro, uma verdadeira instituição ao longo de toda minha vivência
escolar foi a carrocinha do seu Zé, um português que vendia pipoca e algodão
doce no recreio, ficava lá dentro do pátio, vai saber o acordo que tinha com a
direção, licitação não foi... Criança é um bicho malvado, não passava batida a
ausência da falange de um dos dedos do seu Zé.
Sexta-feira era dia de shabat, a cerimônia que inicia
o descanso semanal para a religião judaica, invariavelmente uma das disciplinas
judaicas (hebraico, história judaica, tanach) era nesse dia. Duas meninas acendiam
as velas e faziam as bênçãos do vinho (digo: suco de uva) e da Chalá (aos
não-iniciados: o pão específico para o ritual da sexta-feira). A lembrança do
ritual é prazerosa porque me lembra do prazer de sentir que a semana estava
acabando, ainda que a disciplina fosse a primeira do dia, e não a última.
Às 12:20, depois de seis tempos de aula, tocava o
bendito sinal libertando-nos das amarras das obrigações escolares (no antigo
segundo grau, eram sete tempos, liberados às 13:05). Não me recordo ao certo em
que série nos foi concedida a permissão de voltar para casa desacompanhados. Para
mim, era um suplício ter de aguardar meus pais, não encontra-los no momento em
que chegava à porta de saída gerava uma enorme ansiedade, um sentimento de
abandono e a fantasia aterrorizante de que ficaria eternamente esquecido ali. Certa
vez, uma funcionária, a me ver em desespero, resolveu jogar lenha na fogueira e
comentou, en passant, que acabava de
ver um acidente de carro nas imediações da escola. Claro que, na minha cabeça,
havia perdido meus pais. Uma maldade infinita.
Morávamos muito perto da escola. A caminho de casa,
passávamos inevitavelmente por uma loja de brinquedos, a Rozenlândia, um
paraíso para qualquer criança que gosta de bonecos super-heróis e soldados, no
estilo Comandos em Ação. Os últimos lançamentos de jogos estavam ali, na nossa
frente, tão perto e tão longe, caríssimos, numa época em que a importação deste
tipo de produto ainda engatinhava. Se, hoje, estes tais bonecos Pokémon podem
sair os olhos de cara, imaginem nas décadas de oitenta e início de noventa,
quando nossos carros ainda eram carroças...
Os anos passam e revivo, hoje, na pele de meu filho, o
prazer dos brinquedos. Quando volto com Miguel da escola, passamos também por
uma loja. Ele entra, sempre pergunta o preço de tudo, e sai, fazendo olhar de
pidão embora já sabendo a resposta do pai. “não dá, filho, hoje não, tá caro,
uau, caríssimo”.
Olhando para trás, as preocupações com provas e
deveres de casa parecem tão pueris. Saudades daquele tempo, do campão, da
saladinha, do “bafo”, do seu Zé, do suco de uva da sexta-feira. Era feliz e não
sabia?
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