Na época da escola judaica, eu e uns poucos colegas
inventamos o GP – Grupo dos Playboys, para designar os alunos que vinham de
famílias ricas ou riquíssimas, que viajavam para o exterior com bastante frequência,
que usavam roupas de grife, tênis Nike ou Reebok, comiam M&M, até os lápis
de cor eram caríssimos, suas mochilas eram as mais bacanas, das lojas de marca
do Rio de Janeiro. O GP era uma forma de nos diferenciarmos deles. Não é todo dia que recebemos em casa um convite de
aniversário entregue pelo motorista da família do aniversariante. E também fui
Cinderelo por um dia, quando este mesmo motorista veio buscar-me para levar-me
não sei pra onde. Meus olhos se enchem d’água só de lembrar. Havia, sem
dúvida, uma diferença de classe bastante nítida, embora não fôssemos pobres,
longe disso, éramos da típica classe média judaica da segunda ou terceira
geração de imigrantes, pais profissionais liberais, moradores de bairros
típicos da classe média intelectualizada.
Havia
uma lanchonete na escola, cujo proprietário era um senhor grosseiro, sempre de
cara amarrada, um narigão que fazia jus ao estigma do judeu de napa avantajada,
nariz adunco. Muitas vezes, o troco era dado em balas Juquinha, bem-vindas para
as crianças, irritantes para os pais. Eu não era cliente assíduo, geralmente
levava meu lanche de casa, sanduíche de pão de forma com requeijão ou biscoito
(na época, fazia sucesso o baconzitos, o cebolitos, o pingo de ouro, o mirabel
de chocolate, os monstrinhos creck) ou uma fruta e um suco na garrafa térmica. A
cada produto da lanchonete correspondia uma ficha colorida, lembro-me das cores
azul, vermelha, da verde e da amarela. Se não me falha a memória, a cor mais
desejada, para a minha gula, era a vermelha, que correspondia ao hambúrguer e ao
cheeseburguer (heresia, porque, na religião judaica, não é permitido misturar
carne e leite mas, negócios são negócios...) a amarela, tenho quase certeza,
era para a batata-frita. O GP, não era incomum, comprava um monte de fichas de
uma só vez e ia gastando ao longo da semana. Ainda sonho com a ficha vermelha.
Outro
momento em que a diferença socioeconômica ficava evidente era na celebração do
Bar-Mitzvah, o ritual religioso que marca a passagem do menino judeu, aos treze
anos de idade, para o mundo dos adultos. Era o momento, para as famílias GP, de
afirmar uma vez mais sua riqueza através da espetacularização da cerimônia,
alugando salões em hotéis cinco estrelas da orla carioca, contratando bandas de
música e cantores com cachês de gente grande, equipes de filmagem no padrão
Rede Globo, até os convites eram chiques. Que saudade daquela comilança.
Interpreto
o comportamento do GP em sala de aula a partir deste recorte de classe, boa
parte dele extremamente hostil aos professores, desrespeitoso, arrogante,
prepotente, do tipo “eu pago teu salário, você é meu empregado, então cala a
boca e fica na tua”. Infelizmente, a escola nunca se posicionou energicamente
contra este tipo de atitude, “roupa suja se lava em casa”, “é melhor remediar a
situação”, colocar panos quentes, e evitar que o aluno saia da escola e vá para
um (Colégio) São Vicente da vida, que saia do gueto. Retrospectivamente
falando, é constrangedor imaginar a humilhação que boa parte dos professores
sofreu nos muitos anos, onze, em que lá estudei.
Mas,
admito, capitalizei em cima da riqueza alheia, juntamente com meus companheiros
plebeus de Laranjeiras. Éramos bons alunos, e quando precisávamos realizar
trabalhos em grupo, costumávamos nos dar bem e nos infiltrávamos no feudo
aristocrático. As reuniões extraescolares aconteciam, geralmente, na casa de um
dos representantes-mor do GP, cujo apartamento, um duplex no bairro do Leblon,
chiquérrimo, era tão grande que o corredor do andar de baixo, longo e em curva,
impedia que duas pessoas, nas extremidades, pudessem se ver, apenas ouvir-se.
Ah, e as reuniões aconteciam no andar de cima, à beira da piscina, e um pequeno
elevadorzinho, desses que existem em restaurantes para subir e descer os pratos
entre a cozinha e o salão, saciava nossa fome e nossa sede com o que
quiséssemos. Terminada a tarefa, caso sobrasse um tempinho, jogávamos um pouco
de videogame, um Nintendo, o suprassumo da tecnologia disponível para alguns
privilegiados naquele início de anos 1990, a cujo equipamento se acoplava uma
esteira sobre a qual corríamos parados ao disputar as Olimpíadas virtuais. Poxa,
nem Atari tive.
E
eu, otário, fui fazer ciências sociais e deixar minha avó de cabelo em pé. De
nada adiantava o título de doutor e ter passado num concurso público, ter meu
salário e pagar minhas contas. O importante era ser rico.
Mas, vó, ser GP é
para poucos...
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