As portas da composição se abrem e a pequena multidão
se espreme para que caibam os que tentam entrar, misturados aos que tentam
sair, num espetáculo grotesco de incivilidade e falta de respeito ao próximo. É
hora de pico. Alguém começa um discurso, não consigo ver o rosto, minha visão
está bloqueada por outros rostos imersos em smartphones, livros e jornais. O
homem inicia agradecendo o apoio recebido ao longo dos últimos meses (ou seria
anos?) para que o filho, portador de uma doença raríssima, possa se tratar na
Itália. Sua voz é firme, altiva, não percebo qualquer indício de sofrimento,
embora imagine que, internamente, esteja dilacerado. A firmeza com que explica
a situação desesperadora em que se encontra chama a atenção dos demais
passageiros que, condicionadamente, ignoram, ou fingem ignorar, os habituais
vendedores de doces e chocolates que conseguem burlar a segurança do metrô carioca.
Faz-se um silêncio insólito, incomum na linha que segue para a zona sul às seis
horas da tarde. Interrompo a minha leitura, olho para frente e percebo que
alguém me olha na tentativa de acumpliciar-se naquela situação constrangedora.
Sim, constrangedora, porque não queremos partilhar o sofrimento alheio, o mundo
de hoje é “facebookado”, mundo da fantasia.
Pela primeira vez, vejo uma enormidade de cédulas de
cinco e dez reais saindo de bolsas e bolsos para as mãos agradecidas do homem
que precisa ajudar o filho a sofrer um pouco menos. Nada de “deus lhe pague”,
apenas um “obrigado” sincero. O filho está com ele, numa cadeira de rodas,
aparentemente alheio a tudo e a todos, tem o aspecto físico de uma criança de
sete ou oito anos, embora desconfie que seja um adolescente. Seu corpo e sua
mente estão atrofiados. Saco uma nota de dois reais, é o que tenho à mão.
Desejo boa sorte, ele agradece. A família conseguiu R$ 92.000,00, o Estado dignou-se
a contribuir com menos de dez por cento do montante. Chegamos à estação de
Botafogo, ele sai empurrando a cadeira de rodas e ainda o ouço fazer graça com
um passageiro que permanece no vagão. As portas se fecham, as pessoas se
entreolham. Fico imaginando o que se passa em suas cabeças. Meus olhos estão
marejados, minha garganta deu um nó. A primeira reação é pensar na própria
família e, egoisticamente, sentir-se aliviado por não ter de lidar com a
lembrança permanente de que a vida de seu filho e, por extensão, a sua própria
vida, está comprometida, tem de ser levada a base ininterrupta de remédios, visitas
médicas, internações hospitalares, périplos inesgotáveis aos órgãos públicos de
saúde que, por meio da máquina burocrática, dificulta o tratamento da criança
indefesa, com pausas esporádicas para pequenas alegrias, um arremedo de sorriso,
um sol de primavera, a fantasia de vê-lo chutar a bola de futebol ou fazer uma
manobra no skate.
Tá certo, diz-se que a pneumonia alheia não cura nosso
resfriado, o problema dos outros, por mais sérios que sejam, não resolvem os
nossos, por menores que sejam. Contudo, é preciso dosar nossas angústias,
escolher nossas batalhas diárias, preocupar-nos mais com certas coisas, menos
com outras. Não é fácil, bem sei eu, anos de análise e ainda meio pancada da
cabeça, por muito tempo adepto do rivotril. Vivemos a era dos extremos,
rivotril e lexotan, ansiolíticos e antidepressivos. Coincidência ou não, estava
a caminho da “minha” analista. Talvez deva seguir o conselho de um amigo, que
se dispôs a curar-me a base de álcool, queijos e frios. Sairia mais barato. O
que não tem remédio, remediado está.
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