Viúvas do gueto



O apoio velado (ou nem tanto) por parte da instituição que deveria representar a “unidade na diversidade” judaica do Estado do Rio de Janeiro ao “amigo da comunidade”, nas palavras do presidente de um clube judaico, ao então candidato e posteriormente vencedor do pleito à prefeitura do Rio de Janeiro, bispo “licenciado” da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivella, jogou luz sobre a forma como boa parte do grupo étnico vê seu lugar no mundo.

Ao ignorar voluntariamente o perfil misógino e homofóbico do prefeito eleito, representante do conservadorismo moral que cresce assustadoramente no país, os judeus que nele votaram provaram ser, dentre outros adjetivos menos importantes: autorreferenciados; etnocêntricos à última potência; egoístas, individualistas; preconceituosos de classe e incapazes de conceituar suas próprias categorias de acusação ao candidato da “esquerda”, ao chama-lo de “radical” e “retrógrado”; alheios ao entorno, olhando apenas para o próprio umbigo no melhor estilo “farinha pouca, meu pirão primeiro”, “cada um sabe onde lhe dói o calo”, “se eu não me defender, quem o fará”, comportamento típico de autocomiseração e vitimização, em vez de pensar na luta contra a intolerância ampla e irrestrita; misóginos e homofóbicos, se não conscientes, por tabela, ao apoiar um político que representa a construção de muros simbólicos (por enquanto,  simbólicos) entre quem é e pensa diferente; fetichistas com o Estado de Israel, amigos de primeira hora de quem quer que elogie o quer que seja de lá, ainda que as motivações do elogio nada tenham a ver com os judeus (as 35 visitas do bispo à terra santa ou a maquete da Jerusalém bíblica construída no maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus); ignorantes de suas próprias origens ao reduzir a identidade judaica ao seu aspecto religioso, embora, no seu dia-a-dia, seu comportamento passe longe das supostas virtudes da religião judaica (imagino que transam por prazer, por exemplo).

Eis que surge, em minhas mãos, um documento, assinado pelo prefeito eleito, sem data, intitulado “Termo de Compromisso de Marcelo Crivella com a comunidade judaica”. Foi publicado no jornal eletrônico ALEFNEWS. Não sei se o documento foi elaborado antes ou depois das eleições, imagino que antes. Vejamos.

Apoiar e inaugurar o primeiro hotel Kasher da América Latina, incluindo como turismo receptivo na cidade do Rio de Janeiro.

Não marcar provas de concurso durante festas judaicas religiosas, respeitando calendário judaico.

Apoio da Guarda Municipal e CET Rio para instituições judaicas nos sábados e festas judaicas.

Tornar facultativo (sic) a dispensa de ponto do servidor público municipal de origem judaica, em comum acordo com sua chefia imediata, que desejam respeitar o dia de descanso, SHABAT, durante as sextas-feiras à (sic) partir da noite e dos sábados. Essa dispensa poderá ser compensada com a carga horária de trabalho durante a semana.

Reconhecer para fins de obtenção de certificado de utilidade pública municipal as instituições judaicas que cuidem bem de seus necessitados, desonerando o setor público.

Favorecer o intercâmbio cultural, comercial e científico entre a cidade do Rio de Janeiro e o Estado de Israel.

É difícil de acreditar, ou melhor, é inacreditável que a prioridade número um da comunidade judaica do Rio de Janeiro, cidade com inúmeros problemas de infraestrutura, seja a construção de um “hotel Kasher”. A equação entre judaísmo e religião fica explícita com a necessidade de não marcar concursos públicos durante as festas religiosas judaicas, numa flagrante contradição entre interesses públicos e interesses privados, bem como a possibilidade de compensação de horas não trabalhadas por servidores públicos de origem judaica durante o SHABAT. Ademais, o que é ser “de origem judaica”? Mãe judia? Esta não é uma definição religiosa?

Mas, talvez, o ponto mais sensível do documento seja o item 5, que trata do reconhecimento, para fins de obtenção de certificado de utilidade pública municipal, de instituições judaicas “que cuidem bem de seus necessitados, desonerando o setor público”. Voilà! Economia de grana! Tudo vale a pena quando o desconto não é pequeno? Provincianismo da pior qualidade.

Marcelo Crivella declarou, nesta semana, que o Rio de Janeiro deveria ser cercado por muros, como Jerusalém, para evitar a entrada de armas e drogas. É a defesa do gueto, da separação, da exclusão, do estigma, da violência, da cidade partida. No entanto, ao falar de Jerusalém, e em sentido positivo, ganhou instantaneamente adeptos judeus. A cidade que se exploda.

Pobres de nós, cariocas. E judeus.

Fonte do documento ALEFNEWS:




  

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