De tempos para cá, Miguel tem se mostrado fascinado com
o tema morte. Ontem, abraçados na cama, ele me pergunta o que são cinzas, as
cinzas do corpo. Eu explico que, quando morremos, muita gente prefere ser
cremada, e aí eu explico que a cremação é um ritual onde o esqueleto de quem
morreu entra num forno quentíssimo, transformando os ossos em cinzas. Então a
pessoa não é enterrada, pergunta Miguel? Não, não é, respondo. E por que
preferem transformar o esqueleto em cinzas? Porque muitas famílias levam as
cinzas para casa como forma de recordar a pessoa que morreu, como se essa
pessoa ainda estivesse presente entre nós. Outras famílias jogam as cinzas num
local que a pessoa morta gostava, muitas vezes ela mesma deixando claro, num
documento assinado e tudo, que suas cinzas deveriam ser devidamente espalhadas
naquele jardim ou na praia tal onde pegava onda.
Miguel acredita que, depois de morrer, vai para o céu,
o seu fantasma (alma?). Bom, para o céu ele vai se se comportar, caso
contrário, vai para o inferno mesmo. Pergunta-me se eu vou par o céu. Eu digo
que não acredito nisso. Ele pergunta por que não. Eu respondo que não acredito
nos fantasmas/almas e que tenho a impressão de que viramos apenas pó, cremado
ou não, e que temos de aproveitar a vida enquanto estamos por aqui mesmo. Não
digo a ele, obviamente, que está errado, mas acho importante deixar claro que a
narrativa do céu/inferno não é a única e, esperançoso, fico na torcida de que
ele mude de time.
Então ele me pergunta se eu ficaria triste se morresse
antes de mim. Eu respondo que sim, que ficaria muito triste e digo “ai, Miguel,
que coisa sinistra, você não vai morrer antes da gente”. Ele diz que derramará
mais de trezentas mil lágrimas quando nós morrermos, eu digo que, assim, seu corpo
vai ficar desidratado. Ele dá a solução: que eu me mate para juntar-me a ele no
céu. Mas imagina a tristeza de quem ficará por aqui embaixo! Bom, então todos
devem se suicidar, transferindo os Sant’Anna Gruman para o plano superior.
Simples assim.
Miguel diz que também quer ser cremado e me faz um
pedido entre o mórbido e o fofinho. Que suas cinzas sejam despejadas sobre mim,
como num abraço. Seu último ato nesta vida. Não sabia se ria ou chorava. Ele
diz “te amo muito, papai”. A mãe chama da sala, pergunta se vamos lanchar. Eu
levanto da cama e vou comprar pão francês e salsicha para o tradicional
cachorro-quente de despedida do final de semana.
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