Dia desses, fui obrigado a resolver uma questão
burocrática, dessas que te fazem ir de um lado para o outro gastando seu tempo
e o do funcionário público, mero carimbador de papel e rascunhador de
garranchos que diz ser sua assinatura, azeitando a máquina pública que, via de
regra, existe para esculhambar a vida do cidadão, criando dificuldades para,
depois, oferecer facilidades, em órgão estadual.
Minha esposa já me havia alertado que, no prédio onde funciona o dito órgão,
não se pode entrar de bermuda, sabendo ela que vou trabalhar de bermudão, mas
não de chinelos, a carioquice tem limites. Vesti, então, uma calça daquelas “pescando
siri”, que vai até as canelas, meio ressabiado da escolha porque, sabe como é,
dura lex, sed lex. Vai que o segurança não gosto da cor da calça, ou do
comprimento, ou do modelo, e me barra a entrada. O que define “calça”, afinal? Teria
o segurança uma fita métrica em caso de urgência?
Chego à famosa repartição, coração aos pulos. O
recepcionista me pede a identidade e tira uma foto do rosto. “Esqueci-me de
fazer barba...”, comecei mal a triagem. Então, o segurança, a postos junto às
catracas que dão acesso aos elevadores, dá um meio sorriso e pergunta ao
recepcionista se pode entrar de “bermuda”. O recepcionista, ato contínuo, me
pergunta se estou de bermuda. Eu digo que não, que estou de calça. O recepcionista
olha para o segurança, que continua sorrindo marotamente. O recepcionista pede,
gentilmente, que me posicione à sua frente para que o veredito seja dado.
Passei na prova, “ah, eu acho que não vai ter problema, não”. Entrega-me um
crachá e subo até o andar correspondente. Em menos de cinco minutos, carimbo
dado, rubrica rabiscada, assunto encerrado.
Saí de lá bufando. Quer dizer que o estado do Rio de
Janeiro, em situação falimentar, está mais preocupado com a indumentária de
quem precisava de seus serviços, do que com suas contas, com o atraso no
pagamento de servidores, de prestadores de serviços? É pra sentar no meio-fio e
chorar “lágrimas de esguicho”, como dizia Nelson Rodrigues. Afinal, eu não
estava de sunga, não estava de chinelo, deve haver um mínimo de bom senso, os
códigos de vestimenta são construções simbólicas, mudam ao longo do tempo, até
mesmo os advogados pleiteiam o fim da obrigatoriedade do uso de terno no verão
escaldante do Rio de Janeiro. Nunca é demais lembrar que, embora a roupa possa
conferir respeitabilidade a depender do espaço social que frequentamos, também há
o famoso “colarinho branco”, a princípio, cidadão acima de qualquer suspeita.
O episódio me fez pensar no prazer que pequenos
poderes são capazes de proporcionar a indivíduos que, fora daquele ambiente,
despidos do uniforme, do papel de autoridade que ali exercem, são tão ou mais
vilipendiados no exercício da cidadania do que eu. O prazer de poder negar o
acesso pelo simples prazer de negar o acesso representa a importância, o
protagonismo, a outorga de autoridade, a legitimidade que o Estado lhe confere naquele
pequeno contexto, o Estado lhe reconhece como ator social, como persona. Este
mesmo segurança que me sorriu “à Monalisa” recebe o sorriso “à Monalisa” quando
fica preso na porta giratória do banco, seja por estar de bermuda ou por ser
negro. Ainda que eu estive realmente de “bermuda”, a questão vai muito além do
mero formalismo legal.
Dá próxima vez, alugo um terno na “Só a rigor” (ainda
existe essa loja?), quero ver o segurança fazer gracinha...
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