Depois da morte de papai, infarto fulminante enquanto
transava com a amante num motel da Barra da Tijuca, mamãe conheceu um cara com
quem juntou os trapos. Eu tinha dezesseis anos. Morávamos num amplo apartamento
em Ipanema, de frente para o mar. Vivia permanentemente bronzeada de sol, não
queria saber de estudar, qualquer coisa me bancavam uma faculdade dessas de
fundo de quintal que oferecem vestibular “à la carte”, nas datas mais
apropriadas aos clientes consumidores. Grande negócio esse de abrir faculdade,
né? O cara se mudou de mala e cuia lá pra casa. Passava o tempo tomando uísque
doze anos, jogando gamão online, comendo desesperadamente uns queijos franceses
comprados a peso de ouro numa lojinha da esquina, seu cartão de crédito era
ilimitado. Encontrava-o, invariavelmente, bêbado. Nos breves momentos de
sobriedade, era um sujeito bacana, bom de papo, também cheio de dinheiro,
herdeiro de um construtor que fez fortuna no boom imobiliário de Copacabana lá
pela década de 1940. Boa parte dos edifícios da princesinha do mar leva a
assinatura da construtora do pai. Ele também era chegado em menininhas, e foi
aí que me dei mal.
Fui estuprada por ele. Ninguém acreditou em mim, nem
minha mãe. Claro, eu procurava, andava com aqueles shortinhos, meus seios eram
lindos, malhava pra caramba, como todas as minhas amigas, para os selfies saírem
decentes, bunda durinha, suor escorrendo deliciosamente pelas pernas bem
torneadas, atiçando a libido dos machos latino-americanos, quem procura acha.
Sim, sempre dei pra quem quisesse receber, mas sempre me protegia, sempre
prezei por minha saúde e pelo meu futuro, o corpo era meu e eu fazia com ele o
que bem entendia. Gozar a vida, literalmente, era meu lema. Nunca quis ser mãe,
muito menos naquela época. Vai ver engravidou de um vagabundo desses com quem
vive se esfregando, acusaram-me os arautos da moralidade.
Como bons herdeiros da tradição judaico-cristã, que
pecam a dar com o pau (com duplo sentido, por favor) e escondem as travessuras
pervertidas naquela fachada de foto de capa de revista, mamãe e padrasto colocaram
a culpa na vítima, afinal, era mais fácil reproduzir o estigma de “piranha” do
que admitir a violência de gênero no seio da família modelo classe média
intelectualizada zona sul carioca. Ameaçaram-me com a expulsão de casa se
denunciasse o sem-vergonha. Abafa o caso! Pagaram uma boa grana para um amigo
meu, que não foi tão amigo assim, para assumir a paternidade. Logo depois, ele
forjou sua morte e eu enviuvei. Abandonar a mãe do filho é pecado, assim como o
divórcio. Acidentes de carro são desígnios divinos, não temos controle, argumento
perfeito. O meu ex-marido e ex-amigo escafedeu-se, sumiu, sua vida estava
resolvida, deve ter aberto uma birosca numa
dessas praias nordestinas que os europeus adoram.
A gravidez seguia seu ritmo quando fui contaminada com
o vírus da zika. Descobri, pouco depois, que o feto também havia sido
contaminado e que as consequências não seriam nada agradáveis. Ainda dava tempo
para... você sabe, né... Bom, afasta de mim esse cálice... Vida que segue, aos
trancos e barrancos. Sim, meu filho nasceu com microcefalia, a
cabeça e o cérebro eram menores que o normal para a sua idade, prejudicando o
seu desenvolvimento mental. Hoje, meu filho tem um ano e as previsões
desgraçadas se confirmaram: atraso intelectual, convulsões, epilepsia. Fisioterapia
por toda a vida.
Minha
vida é uma merda. A vida do meu filho é uma merda. Deus quis assim, dizem por
aí. Bom, pimenta na tarraqueta dos outros é refresco. O meu corpo, desde aquela
noite do estupro, deixou de ser meu, deixei de ter autonomia para decidir o que
queria fazer com ele. Chamaram-me de assassina, quando disse que queria tirar aquele
corpo estranho que me habitava sem ter sido convidado, para o bem de ambos nós.
Não, eu que morri, e o pior, morri em vida, sou um fantasma de mim mesma, um
zumbi, sofrendo duplamente. Tentei doá-lo a quem pudesse aguentar o tranco
físico e psicológico, eu não posso mais. Eu não o amo, não fomos feitos um para
o outro. Zombam de mim, “toma que o filho é teu”, mas eu nunca o quis, ele não
é meu. Sabe de um a coisa, eu devia ter procurado uma daquelas clínicas
clandestinas, imundas, sem infraestrutura, um açougue. Sairia de lá morta. E
feliz, enfim.
Mas aborto é pecado, né?
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