A queimação de
sutiã em praça pública representou a luta pela liberdade e autonomia do corpo
feminino e uma rachadura sem possibilidade de conserto da fronteira entre as
identidades de gênero. A partir de então, a redefinição do que é ser homem e o
que é ser mulher entrou na agenda política pra valer, e o estereótipo impingido
a eles e elas, questionado no âmbito acadêmico e fora dele. Ganhamos todos com
isso. Lá em casa, digo que o macho alfa é a Renata. Na verdade, para ser
politicamente correto, deveria dizer que ela é a “fêmea beta”, porque às
mulheres também é facultado o direito de mandar e desmandar, nada daquele papo
de “sexo frágil”. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Eu tenho juízo. Problema
algum em realizar tarefas anteriormente delegadas exclusivamente a elas, pelo
contrário, relaxa-me e dá-me uma sensação de dever cumprido, afinal também moro
no apartamento e, portanto, devo contribuir igualmente com sua manutenção, lavar
a louça, fazer a cama, limpar as caixas de areia dos nossos três gatos, fazer
mercado, colocar o lixo fora, velar o sono de nosso filho à noite, varrer o
chão, tirar a roupa do varal. Cozinhar, por outro lado, é um terror, nada que a
prática não dê jeito. Renata também tem direito de ficar sentada no sofá
tomando uma cervejinha, ora essa. Sem falar no choro, na expressão da
sensibilidade, na fragilidade, na necessidade de colo e de cafuné.
Por outro
lado, a luta por direitos iguais levou uma parte do movimento feminista a
assumir como obrigação desafiadora, por sua vez, características anteriormente consideradas
masculinas, por exemplo, o corte de cabelo, como quem diz “viu, eu também posso
ter cabelo curto”, ou corpos hipertrofiados pela malhação, “viu, eu também
tenho músculos”. Parece que, para igualar-se ao sexo masculino, o sexo feminino
teve de anular-se, tornando-se amorfo, sem identidade. A guerra contra o
estereótipo (“bela, do lar e recatada”) significou, em certos casos, o
deslocamento para o extremo oposto, “feias, sujas e malvadas”, parodiando o
título de um filme de Ettore Scola. Independência, autonomia, liberdade de corpos
e mentes, assertividade, poder de decisão, inserção no mercado de trabalho,
competição ombro a ombro por altos cargos de multinacionais ou de gerente da
farmácia da esquina não se opõem ao que chamaria de feminilidade. Que bom que
não sou o único a pensar a assim, bem acompanhado de alguém que, imagino,
esteja longe de ser uma porca chauvinista, a escritora Martha Medeiros que,
numa crônica intitulada “O que é ser mulher” escreveu o seguinte:
“Nossa
masculinização é um fato. Ok, nenhuma mulher desistirá de tudo o que
conquistou. A independência é um ganho real para nós, para nossa família e para
a sociedade. Saímos da sombra e passamos a existir de forma plena. E o mundo se
tornou mais heterogêneo e democrático, mais dinâmico e produtivo, em suma:
muito mais interessante. Mas não nos deram nada de mão beijada, ganhamos
posições no grito, falando grosso. E agora está difícil reconhecer nossa
própria voz. “Sou mais macho que muito homem” não é apenas o verso de uma
música de Rita Lee, é um pensamento recorrente de cérebros femininos. Alguém
ainda conhece uma mulher reprimida, omissa, sem opinião, sem pulso? Foram
extintas e deram lugar às eloquentes. Nada de errado, repito. Acumulamos uma
energia bivolt e isso tem nos trazido inúmeros benefícios – deixamos de ser um
simples acessório, nos integralizamos. Mas essa nova mulher ainda se permitirá
um segundinho de “cuida de mim”? Se os homens estão se permitindo ser frágeis,
por que não nos permitimos também, nós que temos os royalties dessa condição?”.
Talvez as
machonas de plantão devessem levar-se menos a sério. Talvez devessem “endurecerse,
pero sin perder la ternura jamás”. Talvez seja nesse sentido a crítica
bem-humorada (Machista? Opressora?) de Millôr Fernandes ao movimento feminista raivoso
que vomita bílis e odeia o pênis, quando diz que “o
melhor movimento feminino continuará sendo o dos quadris" e que “como
sexo, as mulheres são insuportáveis. Mas na hora do sexo não tem nada melhor”. O politicamente correto, a partir de um
momento, é tão enfadonho...
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