O capitalista envergonhado

Dias atrás, liguei para um laboratório de análises clínicas a pedido de minha esposa. Fui muito bem atendido, embora aquele laboratório, especificamente, não realizasse o exame de que necessitávamos. A atendente me pediu que aguardasse na linha caso quisesse responder a uma rápida pesquisa de satisfação do cliente. Esperei na linha e uma voz gravada pedia que eu digitasse um número de um a cinco para cada uma das três questões, sendo o número um “muito insatisfeito” e o número cinco, “muito satisfeito”. A voz gravada não usava o termo “atendente” ou “funcionário” ou “telefonista” para designar a pessoa que atendia a ligação do cliente, mas “colaborador”.  

O “colaborador” me havia indicado dois outros laboratórios que dispunham do tal exame. Com o número de telefone em mãos, fiz nova ligação e, desta vez, consegui agendar para dali a alguns dias o procedimento. Ao final, a moça do outro lado da linha me pediu, como na ligação anterior, que, caso eu quisesse, esperasse na linha para responder a uma rápida pesquisa de satisfação do cliente. Como fui, novamente, bem atendido, resolvi esperar. A voz gravada e os termos utilizados eram rigorosamente os mesmos da pesquisa de satisfação respondida anteriormente, inclusive a designação da moça do outro lado da linha, “colaborador”.

Aparentemente, não há mais “patrões”, “chefes”, “funcionários” e “empregados”, mas “líderes”, “consultores” e “colaboradores”. Todos “vestem a mesma camisa”, todos querem o melhor para a “sua” empresa, as relações de trabalho, aparentemente, se horizontalizaram, se equalizaram, e ninguém mais manda em ninguém, todo mundo mete o bedelho em tudo porque estão todos “no mesmo barco”. Se você liga para o seu plano de saúde, é atendido por “um de nossos consultores”. Se quiser vender produtos Jequiti, você é alçada ao posto, como visto num anúncio de TV, numa de “nossas consultoras”. Na papelaria onde comprávamos o material escolar do Miguel, coração aos pulos com os preços extorsivos cobrados, de vez em quando um “colaborador” era chamado à gerência.

O ato de colaborar pressupõe voluntarismo, e vá o “colaborador” desafiar as decisões do “líder” para sentir na pele as consequências da insubordinação. Por maior que haja o prestígio junto ao “líder”, a “colaboração” nada mais é do que um eufemismo sem-vergonha (ou seria envergonhado?) das relações de trabalho cada vez mais desiguais e precárias, estourando a corda sempre no lado mais fraco independente da propalada “eficiência” e “disposição” dos violinistas (para usar a metáfora do Titanic). De um dia para outro, por conta da “reestruturação” da empresa, o “colaborador” se vê buscando “realocação no mercado de trabalho”. É a vez do empreendedorismo, do “faça você mesmo”.


Não há mais “emprego”, mas “colaboração premiada”. Não quer colaborar? Ótimo, mas também não tem prêmio. Afinal, temos livre-arbítrio. Ou não?  



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