Alhos com bugalhos

A gritaria em torno da nomeação do filho do atual prefeito do Rio de Janeiro para o cargo de Secretário da Casa Civil, desnudando a chaga do nepotismo que insiste em dar as caras nas entranhas do Estado brasileiro, deixou em segundo plano ou num plano humorístico o fato do indicado ser formado em “psicologia cristã”, assim mesmo, com aspas. Não, o diploma não foi adquirido por curso à distância. Foi obtido na Biola University, uma instituição cristã de ensino localizada no estado norte-americano da Califórnia. Pois é, logo a Califórnia que repudiou Trump e sua gangue fundamentalista abriga este tipo de “ensino”. E não estamos sozinhos com tal má companhia, conclusão infeliz após rápida procura no Google, que nos leva ao site da Society for Christian Psychology. Sua missão é (em tradução livre):

Promover o desenvolvimento de uma psicologia cristã distinta (da psicologia secular), incluindo teoria, pesquisa e prática, baseada numa compreensão cristã da natureza humana. (...) Uma visão cristã da natureza humana é moldada, primariamente, pelas Escrituras, bem como pelas tradições intelectuais e eclesiásticas do Cristianismo (...). Na medida em que a compreensão de Deus a respeito da natureza humana é o objetivo da psicologia cristã, dada a finitude humana e a existência de distintas tradições cristãs, a Sociedade dá as boas-vindas àqueles que trabalhem de qualquer perspectiva no âmbito da Igreja Cristã.

Tão logo soube da formação acadêmica de Marcellinho, como é conhecido o filho do alcaide carioca, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro publicou uma nota de esclarecimento questionando a titulação em "Psicologia Cristã" (aspas por conta do CRP), que não é reconhecida cientificamente. Alguns trechos da nota:

(...) Cabe destacar que a Psicologia engloba uma formação generalista e que, dentro dessa formação, o Conselho Federal de Psicologia reconhece 12 especialidades, técnica e cientificamente validadas, não figurando nessa lista a dita “Psicologia Cristã”. Por fim, mas não menos importante, ressalta-se que a Psicologia, como ciência e profissão, é laica e deve estar eticamente comprometida com o respeito à liberdade de crença/ não-crença do sujeito. Afirmar a laicidade como princípio ético da Psicologia não significa desqualificar a importância da religiosidade e da espiritualidade para o sujeito. Pelo contrário, a Psicologia, como profissão baseada em técnicas e métodos cientificamente comprovados e validados, reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. Assim sendo, os princípios e conceitos que sustentam as práticas religiosas são de ordem pessoal e a transgressão desse limiar que separa uma prática privada – no caso, a religião – de uma prática profissional de esfera pública – como é o caso da Psicologia – pode acarretar sérias consequências, comprometendo a atuação da (o) psicóloga (o) e seu compromisso ético e político para com o sujeito atendido, qualquer que seja o espaço e o contexto desse atendimento.
Parece que o imbróglio se resume à luta por emprego. Aqueles com senso de oportunidade tentam legitimar sua prática dando uma mão de tinta, envernizando o que, na realidade, é pregação religiosa revestida de terminologia científica. Com dificuldade de conseguir emprego no campo da psicologia da vida real, tampouco vaga na sacristia da igreja do bairro, a menos que o fulano abra sua própria e, quem sabe, com sorte divina, “semeie” franquias por aí, partem para a “apropriação cultural” - outra palavrinha da moda, desde que a menina branca com câncer resolveu usar um turbante e foi acusada, pelos paladinos da identidade sagrada, de expropriar um bem restrito aos “de dentro” –, estratégia semelhante àquela utilizada por pastores que usam roupas e nomes próprios associados a religiões já bem estabelecidas no mercado da fé. Questão de marketing.

A laicidade da prática psicanalítica garante, por exemplo, que um homossexual não receba, como diagnóstico, a posse demoníaca de sua alma e a consequente passagem de classe econômica para o inferno. Tampouco, a tentativa do suposto profissional de conversão (!) do “pervertido” à heterossexualidade, dada a natureza divina do ser humano, não nos esqueçamos de Sodoma e Gomorra. Se o dito profissional parte de preconceitos determinados pela religião, como se vê em condições de tratar um ateu? Que mal este dito profissional não provocará na psique do incauto que lhe procure? Como garantir uma análise imparcial do analisando quando a formação do dito profissional está eivada de dogmas indiscutíveis porque recebidos de um plano superior ao qual devemos todos nos submeter?

Este negócio de psicologia cristã é a versão pós-moderna da psicologia étnica, desacreditada há muito tempo e que, no Brasil, teve ressonância em gente do quilate de Nina Rodrigues, cujo clássico “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” hoje é estudado como exemplo de uma antropologia ainda em estágio infantil.   


Uma sugestão: quer tratar a cuca? Quer tratar a cuca com um cristão que te entenda pela lente do cristianismo? Vá à missa, reze, comungue. Se for o caso, faça uma doação à igreja. Ao menos, seu ombro amigo sabe do que está falando. Pão, pão; queijo, queijo. 

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