Devagar, quase parando. Ou parando.

Sorte a minha, moro a cerca de três quilômetros e meio do trabalho, para onde vou e de onde volto caminhando. Geralmente, exceção feita aos dias de verão, quando o calor no Rio de Janeiro, mesmo antes das nove da matina já é escaldante e o passo é, inevitavelmente, mais lento, o trajeto leva entre trinta e quarenta minutos. Vou ouvindo as notícias do dia, passo por uma feira de bairro, contemplo os arcos da lapa e os velhos casarões centenários que, embora bastante mal cuidados, resistem ao tempo. Unindo o útil ao agradável: são trinta e cinco quilômetros de caminhada por semana e uma economia de cento e cinquenta reais em passagem de ônibus por mês.

A economia brasileira se expandiu sobre uma base rodoviária. O preço dos imóveis varia enormemente de acordo com a possibilidade ou não de estacionar o carro numa das vagas de garagem do edifício. A importância e centralidade da indústria automobilística são tamanhas, gerando emprego e renda, que cansamos de ver e ouvir reportagens sobre o aumento ou queda na venda de veículos como reflexo de ciclos de crescimento ou recessão da economia nacional. Se a economia vai bem, mais carros são vendidos e mais funcionários são contratados; se vai mal, menos carros são vendidos e mais funcionários são demitidos e férias coletivas são concedidas aos que conseguiram manter o emprego. Anos atrás, ouvi de um lobista de uma montadora japonesa este mesmo argumento.  

Moramos num edifício construído no início da década de 1950, portanto, quando a quantidade de automóveis circulando nas ruas ainda era razoavelmente civilizada, e o número de vagas de garagem não correspondia à quantidade de apartamentos. Hoje, pelo contrário, há edifícios que possuem mais vagas de garagem do que apartamentos e, em São Paulo, a “solução” que muita gente achou para o rodízio de veículos, implantado para tentar reduzir os engarrafamentos na maior metrópole da América Latina, foi comprar um segundo veículo. Seria cômico, se não fosse trágico. E os cariocas não podem se regozijar de nada, muito pelo contrário. Uma pesquisa realizada em 2015 indicou que o Rio de Janeiro é a terceira cidade com maior problema de congestionamento no mundo. Por causa do trânsito, um carioca perde 99 horas extras de sua vida por ano, tempo equivalente a quatro dias inteiros. Isso sem falar no aumento da poluição cujas consequências negativas para a saúde é comprovada com o  aumento na quantidade de pessoas com problemas respiratórios. Tempo perdido é menos qualidade de vida, menos tempo com os filhos, menos tempo para dormir, menos tempo para ler um livro, menos tempo de saborear o café da manhã, menos tempo de sexo para os mais libidinosos, menos tempo para não fazer nada.

Nem todo mundo trabalha perto de casa, muito antes pelo contrário, daí eu ser um cara sortudo. Daí não ser uma sangria desatada o fato de meu apartamento não ter, em escritura, uma vaga de estacionamento. Se tenho de viajar, prefiro alugar um carro ou ir de ônibus. Para mim, e colocando na ponta do lápis, ter um carro não é vantagem, a despeito da liberdade de ir e vir (nem tanto, nem tanto...) a hora que seja e de não depender de terceiros: IPVA, revisão e manutenção mínima, seguro, combustível, estacionamento, troca de pneu, eventuais multas e imprevistos. Sem falar na proibição de dirigir depois de beber e na comodidade de desmaiar no banco traseiro do táxi.

Por outro lado, na cidade do Rio de Janeiro, o sistema de transporte público desencoraja aqueles que dele dependem a abandonar o carro particular, caso tenham condições financeiras de bancar um. Boa parte da frota de ônibus está em mau estado de conservação e não possui sistema de ar-refrigerado, exceção feita aos que circulam pela zona sul da cidade, a malha metroviária é ridícula se comparada a outras grandes metrópoles latino-americanas, como Buenos Aires e Santiago, e os trens suburbanos, em horário de pico, são um verdadeiro teste para cardíaco. A malha cicloviária existe, o que é bom, mas ainda precisa expandir-se. Acho muito bacana quando vejo alguém manejando sua bicicleta e, na parte de trás, uma plaquinha que diz “respeite, um carro a menos”.  


O direito de ir e vir, o direito à mobilidade urbana é um direito humano, afinal, está intimamente relacionado à qualidade de vida e ao exercício da cidadania. Nosso processo civilizatório estará completo apenas quando a decisão de comprar ou não um veículo próprio for motivada por questões puramente simbólicas, culturais, e não de razão prática. Como perguntava aquele personagem: “Falta muito, papai Smurf?”. 


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