Quando a filósofa Marilena Chauí chamou a classe média
de fascista, fiquei indignado. À época, escrevi um texto que, pensando bem, era
uma espécie de chororô. Elencava as mazelas vividas por nós, remediados, que
pagamos três vezes por serviços garantidos pela Constituição Federal, como
educação e saúde. Pagamos imposto, plano de saúde e médicos que não aceitam
plano; pagamos imposto, educação privada e cursinho de inglês. Somos pobres
coitados, não fascistas: era meio que a moral da estória. Recebi algumas
críticas construtivas, que me instigavam a refletir sobre a canalização de
minha indignação para algo que contribuísse para a mudança do quadro de nossa secular
desigualdade social. O quê eu poderia fazer de prático? Que tal ir além do textão? Da masturbação socioantropológica?
A partir deste ano, Miguel frequentará uma escola
pública. A decisão de coloca-lo na rede municipal de ensino, sinceramente, não
foi nada fácil. Amigos admitiram que, mesmo concordando que de nada adianta
apenas reclamar, que a realidade não mudará num estalar de dados, não têm a
coragem necessária para largar o ensino privado. Não querem que seus filhos sirvam
de “boi de piranha”, não querem “pagar para ver” – quer dizer, e ironicamente, “deixar
de pagar para ver” -, preferem “assistir de camarote” a melhora na qualidade do
ensino para, aí sim, subir a bordo. Entendo este raciocínio, mesmo, mas
decidimos “colocar a mão na massa”.
A ideia de que o público é ruim porque é público e que
o privado é bom porque é privado está tão enraizada no inconsciente coletivo
que o círculo vicioso não se rompe, se retroalimenta. O público sempre serviu,
historicamente, para enriquecer o privado, e a dificuldade de estabelecer
fronteiras bem definidas entre o todo (público) e a parte (privado), tradicionalmente
representado pela célebre frase interrogativa “você sabe com quem está falando?”,
impediu a formação de uma consciência cidadã que compreendesse o “público” como
sendo de todos. Todos querem “tirar uma casquinha” do Estado porque o Estado é
entendido como inimigo e “de ninguém”. As migalhas que restam são investidas em
quem não tem redes de relacionamento. São dignos de pena, comiseração.
Na primeira semana do Miguel na nova escola e depois
da primeira reunião de pais, tive a sensação de que, até agora, vivíamos numa
realidade paralela, numa bolha. O discurso da valorização da diversidade, do
respeito ao diferente, ganhou vida finalmente. Meninos e meninas de diferentes
cores, com distintas linguagens corporais e verbais, moradores do morro e do
asfalto, distintos gostos musicais que enriquecem a experimentação do mundo,
ajudam a quebrar preconceitos e estereótipos, estigmas. Eu realmente fiquei
emocionado no primeiro dia de aula, gente chegando a pé, de bicicleta, de moto,
de carro. A mãe, sem instrução alguma, que pede à professora que não deixe a
filha ficar de conversa com as colegas de classe porque quer que a filha tenha
um futuro melhor. O tiro pode sair pela culatra, podemos concluir, mais à
frente, que o Brasil realmente não tem jeito. Por enquanto, estamos confiantes
e conscientes de nossa responsabilidade por uma educação pública de qualidade.
É fácil ser progressista pagando dois, três mil reais numa
mensalidade escolar. Colocar a bundinha na janela é outro papo.
Comentários
Com relação às críticas da M. Chaui à classe média, reagi como você até me deparar com esse artigo. Não sei se vc conhece, mas aproveito pra deixar o link pra vc e pros seus leitores. Acho que uma das facetas mais desagradáveis da classe média é justamente detonar os serviços públicos. (Só pra esclarecer, me reconheço totalmente como membro da classe média, inclusive em muitos dos seus vícios e preconceitos de classe;).
abraços
http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-classe-media-brasileira