A praça São Salvador é democrática, tem de tudo.
Crianças de todas as idades, tamanhos e cores brincam no parquinho de areia, no
balanço, na gangorra, no escorrega, sobem nas árvores. Andam de skate e
aceleram suas bicicletas, apavorando, com suas manobras não tão radicais, as
rodinhas de senhorinhas e senhorzinhos que tomam banho de sol e jogam conversa
fora. Catadores de lata descansam nos bancos. Pregadores evangélicos tentam
arrebanhar os passantes no púlpito improvisado no coreto onde, aos domingos, o
pessoal do chorinho se aboleta com seus violões e suas flautas. Artistas
circenses fazem malabares e brincam de bambolê. Vendedores de bebidas disputam
o espaço público com os demais frequentadores a partir do pôr do sol, quando o
pessoal que trabalha nas imediações se reúne para uma cervejinha antes da volta
para a casa. Mendigos dormem nos bancos. O pipoqueiro instalado por ali há anos.
O rapaz do pula-pula. A moça da água de coco. O jogo de botão aos sábados pela
manhã. A roda de capoeira nos sábados à tarde. O bloco carnavalesco que dá a volta
na pracinha. A feira de artesanato aos domingos. Casais de namorados e
namoradas, afinal, a pracinha é um bastião de resistência à intolerância. As
manifestações políticas. A distribuição de média com pão com manteiga para quem
precisa no início da manhã.
Dia desses, a criançada jogava bola ao lado de dois
homens que conversavam alheios aos dribles e chutes homicidas que, incrivelmente,
deixam intactos os para-brisas e a lataria dos carros estacionados em volta. De
repente, e como que de propósito, um dos homens começa a discursar em altos
brados suas façanhas futebolísticas em priscas eras, narrando uma jogava digna
de Garrincha, come um, come dois, come três, joga o corpo pra cá e pega a bola
lá do outro lado, bate corner e corre pra cabecear na grande área. Os moleques
começam a rir. Um deles vira pra mim e pergunta “tio, você acha que é verdade?”.
Eu digo que não sei, que eles deveriam chamar o homem para provar a propalada
habilidade. Dito e feito.
O homem nega o convite, diz que não joga bola há dez
anos, que é preciso se preparar, que não é assim de uma hora para a outra, e
que ele estava esperando “uma comida” .Só não se tornou profissional porque não
tinha dinheiro para a condução que o levaria ao campo de treinamento do
Flamengo. Lembra que jogava pelada com o Adílio, ídolo rubro-negro, na Cruzada
de São Sebastião, enclave de pobreza no bairro carioca do Leblon. Parece que o
nosso Forest Gump falava a verdade porque, lá no Wikipédia, na descrição sobre
a Cruzada, lemos que “o mais ilustre morador da Cruzada foi o jogador Adílio, que jogou por vários
anos no Flamengo, fazendo
parte do elenco mais vitorioso da história do clube”.
Forjou sua
habilidade nas batalhas intramuros do presídio de Água Santa, onde cumpriu pena
sabe-se lá por que, também não entramos nessa seara. Mas o clima era amistoso, afinal,
todos os encarcerados faziam parte de uma mesma organização criminosa. E ai
daquele que descumprisse o acordo de cavalheiros, como um novato que
desconhecia as regras de comportamento no campo de jogo, entrando violentamente
na canela do adversário e recebendo, mais tarde, sete facadas e a sentença de
morte. Cabeças rolavam pelas galerias, garante, com um riso frouxo desdentado.
Começa a chover. Pego o Miguel e vamos ao “escritório”
comer um pastel de carne, tomar uma Fanta laranja (ele) e uma Antarctica
Original (eu). Ele ri do personagem que acabávamos de conhecer, não entendeu
muito bem a parte da Água Santa, mas se divertiu com suas expressões faciais e
o falar embrulhado e praticamente ininteligível pela falta de dentes. E eu
lamento a falta que um Adílio nos faz...
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