Pinceladas da pracinha

A praça é do povo, certo? Errado, a julgar pela desordem que impera na Praça São Salvador. Falo, sobretudo, dos vendedores ambulantes que loteiam o espaço no final do dia com seus isopores entupidos de garrafas de cerveja e sacos de gelo. Privatizam o bem público em nome de interesses particulares, e ai de ti se for contestar o digníssimo trabalhador informal, afinal, todos temos direito a um lugar ao sol (e, no caso, sob a lua). Ai das crianças que têm de ouvir impropérios e ameaças quando a bola com que jogam uma inocente pelada bate, sem querer, é claro, no isopor ou ameaça a mercadoria em exposição. Fico me perguntando se estes abnegados ambulantes têm autorização para vender bebida alcóolica em garrafas de vidro ou se simplesmente têm autorização para vender qualquer coisa. Sim, a crise não tá fácil pra ninguém, mas devagar com o andor. Outro dia, me deram uma ideia suicida: que eu experimente chegar antes do início da baderna, coloque uma cadeira de praia no local tradicionalmente ocupado por um ambulante e fique por ali, apreciando a paisagem. Serei acusado de invadir a sesmaria alheia? Brasil, Brasil...
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Então estou sentado na pracinha tomando minha cervejinha e lendo um livro de crônicas dá Martha Medeiros quando um rapaz senta no banco ao lado e começa a falar comigo. Tiro o fone de ouvido e percebo que não é um maluco, como sói aparecerem por essas bandas. É o rapaz que entrega gelo pros ambulantes. Reclama do calor, diz que come pra burro, mas o suor controla o peso. Pede o livro dá Martha emprestado, eu lhe empresto de bom grado, ele diz que tem que ler alguma coisa todo dia. Eu me espanto com meu próprio preconceito. Quem disse que o entregador de gelo não gosta de ler? Há esperança, amigos, há esperança. Para mim e para ele.
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Saindo da pracinha, vimos um menino de cerca de quatro anos jogar uma lata de coca no chão. Havia outros meninos mais velhos com ele. Eu fui lá perguntar se não iam jogar a lata no lixo, a dois metros dali. Os mais velhos apontaram pro de quatro anos dizendo que foi ele. O de quatro anos fazendo cara de e paisagem. Imagino que copia o comportamento dos pais. Miguel se dispôs a jogar e eu o proibi. No caminho de volta, me arrependi dá proibição, voltamos à praça e a lata estava lá, claro. Miguel a jogou no lixo, atitude correta e lição para o pai. A sociedade vai de mal a pior, cada um por si e ninguém por todos, nenhum sentido de bem público, espaço público, cidadania, responsabilidade com o próximo. Miguel me dá orgulho, está no caminho certo.

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De novo na pracinha. Miguel reencontra o menino que jogou, há alguns dias, uma lata de coca no chão e um de seus cúmplices. Desta vez, o cúmplice é o autor da atrocidade. Tira o pinto pra fora e jorra o mijo no chafariz centenário no centro da praça. Miguel quer chamar a polícia e eu acalmo os ânimos, embora minha vontade fosse dar um esbregue no mal-educado. Os dois pequenos infratores vão embora e Miguel continua incrédulo, perguntando o por quê daquele atitude, sujar um monumento antigo. Sério, às vezes sinto vontade de ser bolsominion e lutar pela redução da maioridade penal... Nada que uma gelada não ajude a esquecer.



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