O clube judaico Hebraica, no Rio de Janeiro, faz parte de minha
memória afetiva. Lá, passei muitíssimos momentos de prazer durante a infância e
adolescência. Esquentei o banco de reservas (era perna de pau, confesso) das
categorias “fraldinha” e “pré-mirim” que participavam do campeonato
metropolitano de futebol de salão. Frequentei a colônia de férias durante o
verão. Adorava a piscina, sempre lotada nos finais de semana. Ainda sinto o
gosto do hambúrguer e da coxinha de galinha do bar
do clube, no qual tinha conta a ser paga no final do mês. Almoçava, de vez em
quando, aos domingos, com minha família, no excelente Buffet de comida judaica,
no salão do segundo andar do prédio principal. Lembro-me, também, das
discotecas. Jogava pingue-pongue nas mesas armadas nos pilotis e acabava-me nos
fliperamas, especialmente o de luta livre. Os anos 80 e 90 foram os anos
dourados do clube, “bombava”.
Aos poucos, ele foi perdendo seu protagonismo por conta da migração
de boa parte dos judeus, até então moradores da zona sul da cidade, para a
Barra da Tijuca, na zona oeste, e da diversificação de atividades recreativas.
O clube judaico deixou de ser um importante espaço de sociabilidade para a
comunidade judaica, pelo menos no Rio de Janeiro. A decadência é esteticamente
incontestável. As instalações parecem malcuidadas, sujas, encardidas, paredes
descascadas. O clube não é autossustentável. A falta de sócios obriga os
dirigentes a alugar o espaço para eventos nada relacionados ao judaísmo, como
festival de comida de food trucks. É um cenário melancólico.
A possibilidade de convite a Jair Bolsonaro para uma palestra,
aventada pelo atual presidente da instituição, só pode ser entendida como uma
tentativa mal ajambrada de recolocar o clube no mapa afetivo dos judeus
cariocas, uma marketing meio torto, do tipo “falem mal, mas falem de mim”. Quem
sabe os dirigentes do clube não pensaram algo do tipo “será que, mostrando aos
nossos patrícios que o clube está às moscas, que é irrelevante nos dias que
correm para o exercício da judeidade e a perigo de ser tomado por
fundamentalistas de extrema-direita, eles se mobilizam e voltam a
frequentá-lo?”. Só pode ser isso. Não consigo imaginar outro motivo, afinal,
não faz sentido abrir espaço, em nome da liberdade de expressão, a alguém que
defende a restrição a esta mesma liberdade, que despreza o “outro”.
Segundo reportagem publicada na Folha de São Paulo, o dirigente
de plantão considera Bolsonaro “hoje um nome muito
forte e muito querido. Eu mesmo tenho simpatia, sim”. Resta saber pelo quê o
dirigente tem tamanha simpatia: sua explícita posição homofóbica, seu machismo,
sua defesa da ditadura militar, seus elogios a um torturador confesso e à
tortura como princípio ideológico, sua afirmação de que o Brasil é um Estado
cristão. Ah, talvez seu antipetismo. Bom, até aí “morreu o Neves” porque eu não
sou petista, mas tenho consciência de que, nem sempre, “o inimigo do meu
inimigo é meu amigo”.
Pior
ainda se comportou a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro – FIERJ,
cuja nota de esclarecimento “vaselina”, em que lava as mãos no caso do convite,
revela o nível de mediocridade e irresponsabilidade dos supostos representantes
dos judeus cariocas. A nota, aparentemente escrita pela assessoria de
comunicação, porque de uma profundidade constrangedora, prega a autonomia das
instituições e reafirma a necessidade de harmonia
interna. No fundo, ao não se posicionar, transige com a misoginia, a homofobia
e o elogio à tortura e aos torturadores que Bolsonaro incorpora. Ademais, que
diabos de harmonia é essa? A quem interessa? Ou será o velho complexo de gueto
falando, afinal, Bolsonaro é "amigo dos judeus" e defende Israel,
embora sejamos cidadãos brasileiros? Ou sua luta contra os
"comunistas" absolve suas posições tacanhas e homicidas? Transigir
com este tipo de personagem é acumpliciar-se ideologicamente. Apertar o
gatilho, neste caso, é mero detalhe.
O mais perigoso inimigo da democracia é o lobo em pele
de cordeiro, que discursa enfadonhamente em nome da liberdade de expressão, que
faz questão de dizer que não vota em fascistas, racistas, homofóbicos e misóginos
embora, em nome do Estado democrático de direito, acha que devemos, em nosso
próprio domínio, obrigatoriamente, abrir espaço e dar voz a quem discrimina e
vomita bílis contra este mesmo Estado democrático de direito, cujo ideal de
cidadania não se resume ao ato de digitar teclas numa urna eletrônica. O
democrata ingênuo (ou seria falso?) gosta de relativizar, suavizar o discurso
do fascista explícito, porque, no fundo, quem sabe, concorda com suas posições.
É, talvez, enrustido, envergonhado, não consegue sair do armário. Liberdade de
expressão, sim; conivência e estímulo ao ódio, não.
Relevar a intolerância de Bolsonaro em nome da “liberdade de expressão”,
em nome do “Estado democrático de direito” é de um cinismo deslavado. É um
tabefe na cara de quem sofreu e sofre na pele as consequências do preconceito e
do ódio ao diferente. E pensar que nós, judeus, somos (ainda?) conhecidos como
o “povo do livro”. A se confirmar o convite, estaremos diante, sem dúvida, um
caso clássico de Síndrome de Estocolmo.
Por isso, digo: Hebraica, eu não sou seu judeu.
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