O início de outono no Rio de Janeiro, para muitos
cariocas, é a hora de tirar o casaco de pele do armário. A temperatura baixa de
insuportáveis cinquenta graus à sombra para tilintantes vinte e cinco graus
logo nas primeiras horas do dia. Coitadas das crianças que estudam de manhã,
que sofrem com a friaca e são obrigadas, ainda remelentos e sonhando com o
joguinho do celular dos pais, a deixar as cobertas para trás e encarar a bruxa malvada
que alguns chamam de professora.
Reproduzindo o estereótipo da mãe das piadas, que vive a perguntar se o
filho está levando o guarda-chuva porque vai chover e quando ele não leva,
chove inevitavelmente, peço ao Miguel, como zeloso pai judeu, que vista o seu
garboso casaco azul.
No caminho da escola, papo vai e papo vem, comentários
surpresos sobre o fato de não ter tido, até o momento, na sua curta jornada
escolar, professores, apenas professoras, embora saiba que lá pelo quinto ano a
turma terá, como manda a igualdade de gênero, carrasco e carrasca. Eis que o
rapazola tira o casaco azul e o enrola no pescoço. Pergunto se está com calor e
ele responde que não, que está imitando as pessoas ricas que enrolam um pano no
pescoço, e começa a andar com certa ginga típica também de quem, a seu ver, é
cheio da grana. Onde viu isso? Em filmes na televisão.
Miguel ainda não completou oito anos, mas já
construiu, a partir de sua percepção da realidade que o circunda, um sistema de
representação simbólica de distinção entre classes sociais. Ser rico é andar
com uma echarpe no pescoço. É, pode ser. É interessante observarmos como vão
sendo estabelecidas tais associações, a construção e reprodução de papéis
sociais, a incorporação de determinadas práticas sociais, o surgimento de
estereótipos e estigmas. Lembro-me de que, ainda pequenino, ele se vira pra
gente e pergunta por que os mendigos e os ladrões eram negros. De onde tirou
tal ideia? Das ruas do Rio de Janeiro, ora bolas. E da televisão, que mostra
ladrões de galinha e assaltantes a dar com o pau, o noticiário mais parecendo
crônica policial. Em ambos os casos, nas ruas e na televisão, boa parte dos
criminosos e da população de rua é formada por pessoas de pele escura. Tivemos
de explicar-lhe algo chamado de “crime do colarinho branco”, geralmente cometido
por indivíduos de pele clara, e tentamos desconstruir, naquele momento, uma
associação inevitável entre cor de pele, criminalidade e pobreza.
Enfim, estamos fadados a experimentar o mundo até o
fim dos dias. Representamos personagens ininterruptamente, gostemos ou não, porque
somos animais teatrais. Sou pai, marido, filho, irmão, tio, cunhado, genro, torcedor
do Flamengo, beatlemaníaco, carnívoro, ateu, jogador amador de futebol de
botão, cervejeiro, antropólogo, amante de Saramago e muitas outras máscaras.
Só não gosto de usar echarpe no pescoço...
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