Doar sangue é
um ato de amor, de solidariedade, de desprendimento, de compartilhamento, de
vida. Damos uma parte de nós a quem precisa, seja um conhecido ou não. Doar me
faz bem, sinto-me realizado apesar dos desagradáveis efeitos colaterais que,
vez ou outra, aparecem, mãos suadas, pressão baixa e quase-desmaios. Mas tudo
vale a pena quando a vontade de ajudar o próximo não é pequena.
Estabeleci, há
mais de uma década, relação de afetividade com o Instituto Nacional do Câncer –
INCA, no Rio de Janeiro. Não sei bem dizer o quê me levou a doar sangue pela
primeira vez e exatamente ali, afinal, há o Hemorio, que fica nas imediações.
Talvez seja um efeito retardado da morte de minha avó paterna, em 1995, que não
resistiu aos efeitos de um câncer de mama, e cujo tratamento aconteceu no INCA.
Talvez seja uma forma de eu homenageá-la, de honrar sua memória. É um orgulho
boboca, eu sei, quando a atendente pergunta o motivo da doação, se para algum
paciente em particular, e eu respondo que não, que é voluntário. A reação do
funcionário que puxa minha ficha cadastral é a aquela “cara de paisagem”,
indiferente, sei que não mereço uma medalha por isso, sou nada mais do que um
grão, embora saibamos que de grão em grão a galinha enche o papo e os estoques
de sangue ficam em níveis decentes. Mas dou-me o direito de sentir-me útil,
trâmites burocráticos à parte, preenchimento de formulários e perguntas indiscretas,
embora necessárias para o contexto, sobre número de parceiros sexuais, se sou “promíscuo”.
Nenhum constrangimento, nem meu nem do médico, nenhum julgamento de valor, o
importante é a saúde do meu sangue. Ganhei 10 na última prova.
Depois de um
ano sem doar, quarentena imposta a quem faz tatuagem, voltei hoje ao INCA. Como
havia bebido apenas um café até àquela hora, oito e meia da matina, a médica
sugeriu que eu fizesse um lanche no refeitório contíguo à sala de doação. Maçã,
iogurte, suco de laranja ou melão e um queijo quente. Fiquei no suco e no
queijo quente. Da última vez, havia, inclusive, potinhos de sorvete Itália, um
luxo. Pronto para doar, pedi ao enfermeiro que inclinasse o assento de modo a
evitar qualquer mal-estar e, dez minutos depois, uma bolsa de sangue cor de
ferrugem com quase meio litro, saído fresquinho da minha veia, estava pronto
para o que de melhor ele possa dar. A médica, generosa, me deu outro cupom para
o lanche pós- procedimento, que declinei. E ainda fui premiado com a vacina
contra a febre amarela, doença-sintoma de que rumamos céleres de volta ao
século XIX.
Para mim, o
lanche e a vacina são um “plus a mais”, como se diz por aí, porque a motivação
é outra. No entanto, há muita gente que acaba doando em troca de algo, toma lá
dá cá. O Hemorio iniciou, recentemente, uma campanha para aumentar seus
estoques, oferecendo, tal qual o INCA (embora, neste caso, eu desconhecesse) a
vacina contra febre amarela em troca do sangue doado. Outros doam em troca do
lanche. Nada contra, torço para que o resultado da campanha seja mais do que
satisfatório, mas seria fantástico se as pessoas doassem por doar, e nada mais
do que isso.
Nosso nível
civilizatório, nossa consciência cidadã, ainda chega lá.
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