A barriga do Renato

Depois de vinte e dois anos, Flamengo e Fluminense decidirão novamente o campeonato carioca de futebol. Os jornais cariocas relembram, hoje, aquela fatídica final. Bem, fatídica para nós, rubro-negros. Como testemunha ocular e auditiva daquela trágica tarde invernal no então estádio Mario Filho, dou minha versão dos fatos:

Era um domingo, dia 25 de junho de 1995. De um lado, o Flamengo de Romário; de outro, o Fluminense de Renato Gaúcho. A dupla Fla-Flu, que Nelson Rodrigues dizia ter surgido quarenta minutos antes do nada, disputava a finalíssima do outrora cobiçado campeonato carioca. O Flamengo jogava pelo empate para levantar o caneco. Depois do almoço, segui para o Maracanã na companhia de um amigo. Nada menos do que cento e dez mil pessoas tiveram a mesma ideia. Não conseguimos entradas de arquibancada, nada de “vou sentar na arquibancada pra sentir mais emoção”, letra eternizada na voz de Neguinho da Beija-Flor. Conseguimos, milagrosamente, ingressos para as cadeiras azuis inferiores, embaixo da arquibancada destinada aos tricolores. Eu, de camisa rubro-negra, cercado de camisas tricolores. A visão era incrível, porque estávamos de frente para o mar vermelho e preto.

No primeiro tempo, ficamos de frente para o ataque tricolor, e vimos o adversário marcar por duas vezes. O sonho do campeonato parecia ter ido por água abaixo, mas, em meros seis minutos, entre os vinte e seis e trinta e dois minutos do segundo tempo, o Flamengo conseguiu empatar, um dos gols do baixinho marrento. Meus olhos não acreditavam no que viam, e minha empolgação era comedida porque, não só o jogo não havia terminado e, como diz o sábio ditado popular, cautela e canja de galinha não fazem a ninguém, como não pretendia provocar a ira das centenas de tricolores que nos cercavam. Foi quando o inacreditável aconteceu.

Faltando poucos minutos para o final do jogo, o lateral direito do Fluminense dá um corte seco para esquerda, já próximo da grande área rubro-negra. Mal conseguia enxergar o lance, a fumaça que baixava no campo era intensa. Lembro apenas do defensor girando no ar, como num passe de balé, o lateral tricolor cruzando a bola em direção à pequena área e, então, um breve silêncio que durou milésimos de segundo, como na antecipação de uma tragédia. Não vi a bola sair de campo, só havia uma única alternativa, o fundo das redes. Neste momento, uma explosão de alegria tomou conta da arquibancada tricolor, sentíamos a trepidação das estruturas de cimento. Sofri as consequências do êxtase do famoso gol de barriga de Renato Gaúcho, levando um singelo soco nas costas de um torcedor pó-de-arroz levemente alterado. Faz parte, acho.

A volta para casa foi tristíssima. Morava no bairro das Laranjeiras, reduto tricolor na zona sul carioca. Não tirei a camisa do meu time, e aguentei calado as gozações que os campeões faziam, com justiça, diga-se de passagem, porque, se alguém ganha, alguém perde. Um dia é da caça, outro é do caçador. Quando entrei no meu quarto, fechei a porta, sentei na cama e abri um berreiro digno de um recém-nascido no alto dos meus dezessete anos. Um choro baixinho, sentido. O futebol catalisa essas coisas, não sei bem explicar o porquê.


No dia seguinte, as capas dos cadernos de esporte dos jornais cariocas exibiam uma caricatura de Renato Gaúcho paramentado com um cetro, uma coroa e uma capa. Ele era o novo Rei do Rio.  Meu orgulho ferido levou algum tempo para cicatrizar, mas finalmente cicatrizou, afinal, era ano de vestibular e havia coisas mais importantes com que me preocupar. Pois sim...


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