O início foi insólito. Numa festinha com colegas da
faculdade, um flerte e um beijo. Ela, mais pra lá do que pra cá, me convida pra
ir lá pro quartinho, que cara de pau. Eu não fui, desacostumado com estas
feministas. Ela estava curtindo seu ano sabático, entende? Mas comigo tem que
ser coisa séria. Passaram-se dois meses, nenhum contato. Então, ela me telefona
e convida para sair. Saímos naquele carnaval de 2002, depois dum bloco
carnavalesco, o Barbas. Nos três anos seguintes, namoro firme, incontáveis finais
de semana aboletados na casa da hoje sogra, as conversas ao redor da mesa do
café da manhã regado a pães de queijo, pães doces, sonhos de doce de leite e
café preto, o jornal de domingo.
Fomos morar juntos em 2005, num quarto e sala na Rua Paissandu.
Quando as famílias bateram a porta da frente, deixando-nos a sós com a trilha
sonora de “O portão”, do Roberto Carlos, caímos num choro incontido, debruçados
na janela da sala. Sim, o início foi difícil, mas a vida foi entrando nos
trilhos aos pouquinhos. Fomos felizes ali naquele apartamento 409, o último do
corredor, colado na mata, que recebia a visita de macaquinhos em busca de
banana. Tudo bem, tínhamos que aguentar o cara do primeiro andar, imune a
qualquer senso de ridículo, que adorava berrar, quer dizer, cantar Madonna, Maria
Bethânia e Gal Costa, e os gemidos muitos decibéis acima do tolerável do casal
do terceiro andar que namorava com dia e hora pré-definidos. Acho que era toda
quarta-feira.
Menina geniosa. Depois de uma discussão, ainda na
Paissandu, saiu de casa e, ao voltar, de madrugada, descontou sua raiva e
frustração na torneira da pia da cozinha. Conseguiu quebra-la, vai saber de
onde tirou tanta força, talvez de sua genética piauiense, afinal, o sertanejo
é, antes de tudo, um forte. Já me abandonou num ponto de ônibus. Mal conseguia
olhar para o empreiteiro responsável pela reforma do apartamento que compramos
ali pertinho, em frente à pracinha São Salvador, em 2007. Discordava de tudo,
ou quase tudo, que era sugerido pelo pobre diabo. Até hoje lhe dá urticárias. Preferiu
não se meter no dia-a-dia da quebradeira, deixando nas minhas costas a ingrata
tarefa de acompanhar a obra. Não leva desaforo pra casa, quando chama
“Marcelo!” já sei que lá vem esporro. Mas chora por tudo. Esquizofrênica.
Engravidamos em 2008. Quando soube do sexo do bebê,
descontrolou-se. Não sabia cuidar de menino. Ledo engano. A depressão pós-parto
foi um asterisco de pé de página na estória de amor que essa Maria Bonita, sim
senhor, escreve diariamente com o Miguel. É tanta cumplicidade edipiana que dá
até medo. Parecem até nossos gatos, Leopoldo e Guilhermina, que caem de pau um
no outro e, de repente, começam a se lamber, o que, no caso da Renata, é uma
lambida metafórica, deixe-se bem claro, um abraço apertado, uma cosquinha, uma
guloseima saída do forno, sorte do moleque por ter uma mãe mestre cuca. Mãe
professora que pega um quadro negro improvisado e revisa exercícios para as
provas que se aproximam. É com ela que o rapazola compartilha seus segredos, é
ela que diz o que pode e o que não pode fazer, o pai não tem autoridade alguma,
um zero à esquerda. Mas, se quiser jogar uma partida de botão, estamos aí.
Se você quer uma resposta àquela já clássica pergunta
de Freud, “afinal, o que querem as mulheres?”, não procure a Renata. Por quê?
Porque, um belo dia, você está se sentindo o melhor dos maridos ao compartilhar
as tarefas domésticas, sua esposa não fica satisfeita com o resultado e, a
partir daí, puxa-se o fio do novelo de incontáveis exemplos de má gestão da
casa, de má gestão da paternidade, de má gestão do casamento, de má gestão
profissional, de má gestão pessoal, enfim, dê um reset e comece a vida
novamente. E ai de você se tentar justificar o descontrole emocional da senhora
por causa “daqueles dias”.
Sob o argumento de que teve um dia daqueles, vai
chegando perto e colocando aquele pezão disforme na sua cara e pede massagem,
de preferência com hidratante. Não satisfeita, senta na sua frente e pede
massagem nas costas e você, aproveitando a oportunidade, aperta um pouco mais
do que o necessário, vingança. Ela solta um “ai”, mas pede pra continuar, dor
boa.
É comovente seu lado criança. Entra ano, sai ano, sua
crença no papai Noel permanece inabalada. Sem falar nos duendes, claro. É comovente também ver seu esforço em esconder
os fios brancos cada vez mais abundantes, pintando-os periodicamente. E o que
dizer de suas certezas inabaláveis, em forma de afirmações taxativas e
incontestáveis, arrogantes, presunçosas, sobre assuntos os mais variados? Uma
fofura.
Relacionamentos afetivos não foram feitos para serem
explicados, racionalizados. Por que eu amo a Renata? Por que eu quero continuar
ao seu lado? Desisti de responder a estas perguntas já há algum tempo. Quer
dizer, nem todas as respostas podem ser expressas em palavras. Basta dizer que
quero estar velhinho com ela, sentados no banco da praça, tomando uma cerveja
gelada e comendo pastel de queijo, se nosso colesterol permitir. O resto é o
resto.
Amo-te. Feliz 40 anos.
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