Não sou adepto da igreja maradoniana, fundada por uns
doidivanas portenhos em louvor ao maior jogador de futebol de todos os tempos,
na visão deles. Contudo, reconheço em Dieguito um frasista de primeira
grandeza. Na Copa de 86, a famosa “mão de deus” ajudou a Argentina na batalha
futebolística das Malvinas. Oito anos depois, na senegalesca disputa no país do
beisebol, pego num exame antidoping por uso de efedrina, substância proibida, depois
do jogo contra a seleção nigeriana, fez a famosa declaração de que lhe haviam “cortado
as pernas”. Sua ferramenta de trabalho,
seu meio de subsistência, era seu corpo, suas pernas, sua cabeça e
(infelizmente para os ingleses) suas mãos e braços. A metáfora foi perfeita.
Lembrei-me
de Maradona, insolitamente, ao ler as notícias sobre corrupção envolvendo o
ex-governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, e seu ex-secretário de saúde,
Sérgio Côrtes, ambos presos no âmbito da Operação Fatura Exposta, que investiga
desvios milionários na Secretaria Estadual de Saúde e no Instituto Nacional de
Traumatologia e Ortopedia, o INTO. Os desvios que levaram à prisão do ex-secretário são equivalentes ao
dobro do orçamento anual do Hospital Municipal Souza Aguiar, considerado o
hospital com a maior emergência pública da América do Sul. A fraude, aplicada
nas regras de importação, permitiu que uma máfia formada por empresários e
gestores públicos desviasse, por pelo menos 12 anos (2003-2014), de 40% a 60%
de um total de R$ 500 milhões gastos pela Secretaria Estadual de Saúde e pelo INTO
em compras internacionais de equipamentos médicos de alta complexidade, como
macas elétricas, monitores transcutâneos, aparelhos cirúrgicos e unidade móveis
de saúde.
Há cerca de dois anos, um faz-tudo conhecido nosso, desses que são bombeiro,
eletricista, pintor, gasista e o que mais aparecer pela frente, a necessidade
faz o homem, já diz o velho ditado, estava trabalhando no telhado da própria
casa quando, por um descuido qualquer, veio abaixo. O instinto o fez tentar amortecer
o impacto com o braço, o tiro saindo pela culatra, obviamente. Com o braço
arrebentado, foi levado imediatamente para o Hospital Municipal Souza Aguiar,
aquele mesmo cujo orçamento anual não faz cosquinha no montante desviado pela
quadrilha capitaneada pelo ex-governador. Passou dias internado à espera de atendimento,
em vão. Decidiu ir embora, por conta própria e assumindo os riscos. Entrou na
fila do INTO, cujas instalações moderníssimas e profissionais capacitados não conseguem
dar conta dos milhares de pacientes à espera de uma cirurgia ortopédica. Muitíssimos
meses depois, nosso faz-tudo foi operado e pôde voltar à labuta. Sorte a dele,
muita gente fica anos com dores homéricas até conseguir atendimento. Ganhou de
volta seu braço, sua ferramenta de trabalho, que lhe haviam cortado não por
exame antidoping, mas por corrupção e desvio de recursos públicos.
As semelhanças metafóricas entre Maradona e o faz-tudo param nas
metáforas mesmo. Maradona, em 1994, já multimilionário, jogava por prazer, pela
glória de levantar o caneco, pelo paparico da imprensa de seu país, para ser
carregado em júbilo pela “hinchada” até o Obelisco da Avenida Nove de Julho, no
centro de Buenos Aires. Nosso faz-tudo, desamparado, impotente e ao-deus-dará, vítima
do descaso do Estado brasileiro carcomido pela corrupção endêmica e em
acelerado processo de metástase, depende, e muito, de seu braço intacto,
funcional, para sobreviver. Seu drama é o mesmo vivido por incontáveis
brasileiros dependentes de serviços públicos que, embora garantidos na
Constituição Federal, mais parecem peça de ficção lado B.
Alguém aí sabe a pena para o crime de corrupção lá na China?
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