Uma vez por semana, bato ponto na escola do Miguel
munido de botões, palhetas, dadinhos, traves e mesas. Durante uma hora, Miguel
e mais nove colegas – a seleção foi realizada segundo critérios republicanos,
sem favorecimento a laços de parentesco - brincam de futebol de botão (ou
futebol de mesa, para os puristas), por enquanto sem muita rigidez de regras, o
importante agora é introduzi-los numa brincadeira analógica, coisa rara neste
mundo digital de games e Netflix. Como diz o coordenador pedagógico,
alternativa indispensável na falta de energia elétrica, momento em que os
aparelhos eletrônicos têm a mesma serventia que uma nota de três reais.
A recepção ao “tio”- como eles me chamam – é sempre
calorosa. Um dos alunos me abraça e incomoda o filho do “tio”, que fica
emburrado, fecha a cara até o final da oficina. Arranja uma dor no dedo, pede
para ir embora antes do tempo. Na volta para casa, pergunto ao Miguel o porquê
do incômodo com a demonstração de carinho do colega. Imediatamente, ele
responde:
- Antes que você fale, já vou dizendo que não é
ciúme.
- Mas, então, o que é? Por que o colega não pode me
dar um abraço?
- Porque não.
- Filho, eu não vou deixar de ser seu pai. Nunca.
Eu te amo e vou te abraçar sempre. Acontece que, na oficina de futebol de
botão, eu tenho de dar atenção a todos, eu sou tipo de “professor”, não sou
exclusividade sua. Não deixo de ser seu pai, mas, naquele momento, eu sou
também outra coisa. Não leve a mal, ok?
Certo dia, no caminho da escola, Miguel tocou
novamente no assunto, lembrando que eu não deveria abraçar o tal colega. Tentei
escavar, nos recônditos psíquicos da mente miguelina, o motivo do desconforto.
Todas as tentativas foram em vão.
No mais recente episódio de “não ciúme”, Miguel negou-me
um abraço após ser testemunha ocular da demonstração de afeto do desafeto.
Olhando nos meus olhos, disparou:
- Agora, você está contaminado.
Virou as costas e seguiu seu caminho de volta para
casa.
A contaminação de que fala Miguel não é a física,
ao menos não é a ela que acredito ser a acusação. Imagino que o colega tome
banho, escove os dentes e se alimente direito, sob a supervisão dos pais.
Tampouco estava tossindo, espirrando, com meleca jorrando pelo nariz, coçando a
cabeça ou remelento de conjuntivite. Portanto, nada fazia crer que o colega
fosse um perigo à minha saúde física.
A contaminação de que fala Miguel é simbólica, está
associada à ideia do sagrado, entendido como aquilo que deve ser protegido,
mantido à parte garantindo, assim, sua pureza, protegendo a fronteira dos
perigos. A contaminação carrega a ideia de sujeira, e sujeira, como já dizia a
antropóloga Mary Douglas, “é tudo aquilo que está fora do lugar”, que desafia a
ordem, a normalidade, a classificação e as categorias que dão sentido à vida
como nós a enxergamos. Subverte a ordem
das coisas.
E que ordem foi subvertida? A do pai que virou
“tio”, disponível para outras crianças que não o filho. O abraço de um
“forasteiro” rompe a fronteira entre o “fora”(profano) e o “dentro”(sagrado).
É claro que esta é apenas a interpretação de um pai
antropólogo que está sempre procurando sentidos ocultos e interpretações
mirabolantes para fatos da “vida como ele é”. Vai ver o Miguel simplesmente
“empombou” com o colega, os santos não bateram. Ou o colega pode realmente me
contaminar fisicamente. Nada de ciúme.
Pensando bem, deve ser isso mesmo, afinal, posso abraçar outros alunos/jogadores sem grandes cenas melodramáticas.
Às vezes, um charuto é apenas um charuto...
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