Após uma obra emergencial na tubulação de gás do
edifício onde moro, que nos obrigou a tomar banho gelado por vários dias, a
montanha de entulho resultante foi “acondicionada” entre tapumes no meio-fio em
frente à portaria. Imaginei, ingenuamente, que a empresa responsável pelo
serviço retiraria a lixarada, mas os dias foram passando e nada. Muito antes
pelo contrário, ao entulho já depositado, foi sendo adicionado todo tipo de
objeto que os passantes se viam no direito de jogar, como se aquilo fosse uma
grande lata de lixo. Sacos com restos de comida e garrafas de cerveja, muitas
garrafas de cerveja. Além do mau cheiro e da possível infestação de baratas e
ratos, a chuva criou um ambiente propício para o criadouro do Aedes Aegypti.
Anteontem, domingo, o ridículo: os tapumes haviam
desaparecido, mas o lixo não, agora espalhado pela calçada, pelo meio-fio e já
avançando para a rua. No final do dia, vi um gari da Companhia de Lixo Urbano –
COMLURB retirando as montanhas de lixo produzidas pelos frequentadores da Praça
São Salvador. Quando me encaminhava para lhe pedir, encarecidamente, que
solicitasse ajuda a outros garis para limpar a porcaria deixada na frente de
meu prédio e que, aparentemente, só incomodava a mim, vi que sua supervisora
(ou algo parecido) acompanhava o serviço e decidi interpela-la cordialmente.
Mais cordialmente ainda, ela me pediu o número do prédio para que fossem
tomadas as devidas providências naquele mesmo dia.
Passados cerca de trinta minutos, eis que eles
aparecem, o caminhão de lixo e a equipe de limpeza. O veículo para num dos
lados do quadrilátero e os garis começam a retirada de sacos e sacos de lixo do
das lixeiras espalhadas pela praça que, de tão cheias, não conseguem dar conta
da produção de resíduos dos frequentadores. O caminhão anda mais um pouco e
para logo adiante, depois de dobrar à direita. Novamente a equipe de limpeza
trata de deixar o espaço mais sociável. Começo a perder as esperanças para a
solução do meu problema. Ledo engano. O caminhão segue seu caminho e... dobra
novamente à direita, contornando a praça e parando em frente ao meu prédio.
Meus heróis saltam da traseira, onde costumam ficar dependurados durante os deslocamentos
do veículo, e vejo, quase que com lágrimas nos olhos, a lixarada ser retirada e
lançada para dentro da caçamba incineradora.
O desrespeito a direitos básicos do cidadão é tão
corriqueiro, banal, que a reclamação por serviços públicos mal prestados virou
esporte nacional, tradição, motivo de piada, tratada como se fosse algo
inevitável, inscrito no DNA do Estado e da administração pública. É verdade que
o Estado brasileiro foi construído sobre uma base patrimonialista,
personalista, privatista, onde o compadrio e a submissão dos interesses do
coletivo aos interesses privados contribuíram para a perpetuação de uma
sociedade hierarquizada, praticamente “de castas”. O espaço público é relegado
a segundo plano, é “terra de ninguém” e não “de todos” e, por ser “de ninguém”,
muita gente se vê no direito de dilapidá-lo, pisoteá-lo, cuspi-lo, escarra-lo,
um grande aterro sanitário. Os recentes casos de corrupção comprovam esta
interpretação.
Então não há solução?
Sim, há. Ser ativo e cobrar do poder público aquilo
que é de sua responsabilidade, por exemplo, a limpeza urbana. Ser ativo e
cobrar do poder público uma educação pública de qualidade, e não esperar que os
filhos entrem numa universidade pública de excelência depois de desprezar o
ciclo fundamental e médio municipal e estadual. Botar a mão na massa. Ver o
caminhão de lixo sumir no horizonte com o “meu” entulho deu uma sensação de
prazer enorme, com toda a sinceridade. Senti-me respeitado.
O Estado é incompetente e irresponsável na medida em
que a sociedade permite que ele o seja. Por outro lado, tal qual uma relação
simbiótica, à responsabilidade que cabe ao poder público no cumprimento e
respeito à lei corresponde uma série de obrigações correspondentes aos cidadãos.
Ver uma garrafa de cerveja vazia no lugar do finado
entulho do dia anterior foi de amargar.
Como diz um conhecido jornalista: “Me ajuda aí, pô!”.
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