O sexo dos outros

Acho que foi durante o mestrado. Era assistente de meu orientador numa das disciplinas introdutórias à antropologia para uma turma recém-ingressa ao curso de Ciências Sociais. Também havia outro assistente, orientando do doutorado, um belo negro angolano, imponente pela altura e muito simpático. Interessei-me por uma das alunas, chamei-a para sair, saímos algumas vezes. Não me lembro de seu nome, mas lembro de sua surpresa (incredulidade?) ao receber o convite para uma cervejinha depois da aula porque, entre os amigos da turma, todos estavam certos de que o professor e os dois assistentes eram gays. Havia até uma espécie de “bolão” para saber quem pegava quem, quem era o passivo e quem era o ativo, se havia rodízio, voyeurismo.

Não é fácil despir-se de estereótipos e estigmas, mesmo para alunos de Ciências Sociais, teoricamente mais abertos à diversidade de ideias e comportamentos. A minha ex-peguete simplesmente reproduzia o senso comum. Sim, meu orientador era gay assumido, mas porque os outros dois também o seriam? Imagino que a evolução do raciocínio seja mais ou menos o seguinte: o homossexual é um desviante que “contamina”, não só simbolicamente, quem lhe rodeia, portanto, seu círculo de amigos é, basicamente, formado por “gente como ele”. Homossexuais são depravados e predadores sexuais, promíscuos, hiperssexualizados, não conseguem se segurar, olha aí a baixaria da Parada Gay. Ménage à trois equivale ao papai e mamãe dos heterossexuais, feijão com arroz. Com relação ao vértice negro do triângulo amoroso, sua virilidade estereotípica lhe colocava, a princípio, na posição ativa. Ao terceiro vértice, o branquelo de olhos claros, possivelmente sobrou-lhe a sem-vergonhice e o fato de usar, à época, camisetas um pouco mais apertadas do que rege a boa conduta do macho latino-americano.

A estereotipia, que resvala para o estigma tem, por consequência rotineira, a marginalização social e, não raro, a criminalização do diferente. A historinha do virtual triângulo amoroso me veio à cabeça depois das últimas declarações do presidente norte-americano, Donald Trump. Disse o pascácio que, após consultar generais e especialistas militares, os transgêneros estão, a partir de agora, banidos das Forças Armadas porque, afinal, elas precisam “se concentrar na vitória decisiva e esmagadora e não podem ser sobrecarregadas com os tremendos custos médicos e distúrbios que envolvem os transgêneros”. De hipócrita, pelo menos, Trump não pode ser acusado. Diz aquilo em que acredita, ressoando as vozes de milhões de norte-americanos racistas, xenófobos e homofóbicos. Os transgêneros, dizem eles, são indivíduos perturbados. Precisam de tratamento psicológico. Não lhes queremos nas Forças Armadas, são indesejáveis, párias, uma ameaça à paz social.

Transgêneros não sofrem de distúrbios psicológicos por sua “condição”, não mais que qualquer indivíduo que se encaixe numa das categorias tradicionais de identidade sexual ou de gênero. Que o digam os heterossexuais pedófilos, não é mesmo? Ou os heterossexuais que, de vez em quando, vão comer/dar para um travesti nas muretas da Glória? Ou os heterossexuais que dão surra na companheira porque “faz parte da natureza masculina”? Transgêneros lidam bem com sua sexualidade porque a construíram voluntariamente, não se submeteram à ditadura da heteronormatividade.


E imaginar que, em breve, poderemos ter um Trump tupiniquim. Só de pensar, me dá calafrios. 


Comentários