O coxinha envergonhado

Há pouco tempo, Miguel chegou em casa com uma informação relevante: até segunda ordem, a escola pública municipal onde estuda deixaria de entregar material de estudo em folhas fotocopiadas devido ao contingenciamento orçamentário. Por orientação da secretaria municipal de educação, cada escola teria um número pré-definido de fotocópias e, por conta disso, os deveres de casa passariam a ser transcritos do quadro negro para o caderno, demandando dos alunos paciência e capricho na escrita. No dia seguinte, fui à escola e perguntei ao coordenador se a escola aceitaria a contribuição de uma resma de papel A4. A proposta foi muito bem recebida e devidamente cumprida. No próprio dia da entrega da resma de papel, a professora do Miguel, ao me ver numa das salas da escola, onde dava oficina de futebol de botão para os endiabrados colegas do terceiro ano, alguns deles bastante promissores com a palheta, veio agradecer-me e desejou-me que deus me pagasse (bom, se dependesse da prefeitura, ficaria a ver navios...), e eu disse que não precisa me agradecer, que os pais devem, na medida de suas possibilidades, participar da vida acadêmica dos seus filhos, seja contribuindo materialmente, seja oferecendo atividades extracurriculares aos alunos, seja “simplesmente” interessando-se pelo desenrolar do aprendizado.

Li, dia desses, uma matéria a respeito de famílias de classe média da cidade de São Paulo que, tanto por questões financeiras relacionadas à gravíssima crise  econômica que assola o país, quanto de visão de mundo, decidiram tirar seus filhos de escolas particulares e aventurar-se no ensino público tão vilipendiado nas últimas décadas. Identifiquei-me enormemente com os relatos, sobretudo quando estes pais falam da importância de ampliar o horizonte dos filhos acostumados a uma “sociabilidade de shopping”, com um círculo de amigos homogêneo, com visões de mundo parecidas, gostos e práticas semelhantes. Estas famílias decidiram estourar a bolha social em que viviam e seus filhos, pelo que depreendi da reportagem, só têm a agradecer pela oportunidade de viver novas vidas, ter contato real com a diversidade cultural da cidade, com a diversidade física de seus moradores. Sem falar da participação dos pais na vida escolar, por exemplo, uma nutricionista que se dispôs a ajudar as merendeiras na elaboração de um cardápio mais saudável e balanceado para as crianças. Ou mesmo a compra de rolos de papel higiênico, se for o caso.

A participação cidadã não pode se resumir ao pagamento de impostos e a consequente exigência legítima de prestação de bons serviços públicos por parte do Estado. A participação cidadã exige, por mais óbvio que pareça, participação, comprometimento, envolvimento, fiscalização, cobrança. Nós, cidadãos, também somos parte da solução. Sim, é claro que pagamos nossos impostos e esperamos que a escola tenha resmas de papel suficientes para cobrir as necessidades do ano letivo, mas também sabemos que o “público”, há pelo menos cinco séculos, sempre foi olhado de viés, relegado a segundo plano em prol dos interesses privados, sendo os casos de corrupção mais recentes a prova de que a coisa pública só é boa se for utilizada para fins particulares. Portanto, reclamar da falta de papel higiênico ou do papel A4 é válido mas insuficiente. O buraco é mais embaixo.

Abraçar a escola pública é fundamental, tratá-la com carinho, valorizar financeiramente seus profissionais, valorizar sua infraestrutura, fazer um mutirão para pintar suas paredes, ajeitar a porta empenada do banheiro, trazer um grupo de artistas circenses para ensinar aos pirralhos a arte dos malabres e dos palhaços ou um grupo de teatro para atiçar a sua imaginação, propor contação de estórias. A cidadania é, no final das contas, a dona do espaço.

Infelizmente, parte da classe média, que bate no peito e se diz orgulhosamente progressista, republicana e democrática, é, na verdade, tão elitista quanto a verdadeira elite econômica. Essa classe média, com boa formação acadêmica e intelectual, adota um discurso que não condiz com suas práticas. Defende a educação pública de qualidade, embora seus filhos continuem estudando em escolas particulares cujas mensalidades ultrapassam, tranquilamente, os R$ 2.000,00. O discurso da diversidade é dos muros da escola particular para dentro, apenas. A educação pública para esta classe média só deve ser buscada quando esta educação pública já está consolidada, como é o caso dos colégios Pedro II e Aplicação, este último vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e, mais adiante, das próprias universidades federais que, malgrado o esforço do governo federal em destruir o ensino superior de qualidade, vêm resistindo bravamente. Para esta classe média, o público  só é bom quando vai ao encontro de seus interesses particulares, nada dessa balela de igualdade de oportunidades, universalização da educação de qualidade. Farinha pouca, meu pirão primeiro.

Não menos importante, há o preconceito de classe e o estereótipo relacionado à educação pública, “carne de segunda”, a xepa, o resto do resto, é melhor ter qualquer educação do que não ter educação alguma, lambam-se os beiços, não é mesmo? A escola pública, segundo o estereótipo, é coisa de gente sem classe. A classe média que se diz progressista, mas é coxinha envergonhada, não quer seus filhos misturados com filhos de porteiros e empregadas domésticas, de bombeiros, marceneiros, tampouco com...filhos de professores, profissionais liberais e funcionários públicos que romperam com o círculo vicioso do “é ruim porque é público”. A classe média recheada de frango com catupiry acha que seus filhos correm o risco de sentar ao lado dos filhos de traficantes de drogas, de terem a escola invadida por bandos armados de fuzis e metralhadoras, esquecendo-se esta classe média que os filhos dos grandes traficantes e dos grandes banqueiros e financistas não se misturam com esta ralé obrigada a usar o uniforme padronizado da prefeitura, símbolo de estigma e vergonha. A educação pública, para esta classe média, é coisa de pobre, preto, coitados de todo tipo, especialmente brancos que descenderam na pirâmide social, enfim, indivíduos cuja escala de valores deve ser reformada para alcançar um nível mínimo de civilidade.

A suposta superioridade moral dos coxinhas envergonhados, cujos filhos devem ser protegidos da violência física e simbólica das hordas ignaras, me fez resgatar uma reportagem publicada pelo jornal O Globo em 2014, com o título “Pais se alarmam com consumo de bebidas alcoólicas em festas do ensino médio”. Nela, relatam-se os preparativos para festas de formatura de tradicionalíssimas escolas particulares cariocas, que esta classe média “acoxinhada” reza para entrar, eventos milionários que podem custar perto de um milhão de reais, cerca de R$ 3.500,00 por aluno.

Até aí, como se diz, “morreu o Neves”, afinal, cada um gasta a grana que tem da forma que melhor lhe convem. Gosto não se discute, lamenta-se. Acontece que, junto com as cascatas de cholocate suiço, das áreas VIP (imaginem vocês áreas VIP para malecotes de dezessete anos) e da participação de anões contratados que, segundo a reportagem, é um “novo modismo nesse universo”, há bebidas alcoólicas à vontade e, por via das dúvidas, já que o seguro morreu de velho, ambulâncias com paramédicos na porta. Tudo isso com a conivência dos pais, apreende-se dos relatos. Gente fina, portanto.


“Você nunca sabe que resultados virão da sua ação. Mas, se você não fizer nada, não existirão resultados” (Gandhi) 

Link: https://oglobo.globo.com/sociedade/pais-se-alarmam-com-consumo-de-bebidas-alcoolicas-em-festas-do-ensino-medio-12307325


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