Há semanas os moradores da Rocinha vivem
aterrorizados, sitiados em meio a uma guerra entre facções criminosas rivais. É
impactante a imagem de pais e mães levando no colo seus filhos à escola,
cobrindo-lhes o rosto para que não vejam corpos ensanguentados estirados no
chão. Ouvi o seguinte relato macabro de uma conhecida: numa viela da favela, um
homem extirpava o coração de outro homem com uma faca. Aquilo me deu engulhos,
e minha reação foi perguntar, meio que absorto neste clima surreal, se, ao
menos, o desgraçado já estava morto. Lembrei-me de um documentário sobre os
generais canibais na guerra civil que arrasou a Libéria, país paupérrimo da
África Ocidental. Bom, guerra lá, guerra cá.
Ontem, o ministro da defesa, Raul Jungmann declarou,
durante evento em São Paulo, que a situação de guerra na favela da Rocinha
havia acabado, mas que os tiroteios já são “parte da história da comunidade”. A
declaração, obviamente, é infeliz, porque é papel das forças de segurança não
deixar que a violência se torne parte da paisagem. Mas há um clima de
resignação e adaptação camaleônica da maioria dos moradores da cidade do Rio de
Janeiro, e não só da Rocinha e outras favelas assoladas pela violência do
tráfico de drogas e das milícias, que não têm para onde fugir.
Na semana passada, durante uma perseguição a poucos
metros da sede do governo estadual, bandidos trocaram tiros com policiais e
jogaram uma granada que acabou explodindo perto do meio fio de uma outrora
pacata rua residencial. Uma bala atingiu a janela do sexto andar de um prédio. Um
morador achou que um bueiro havia explodido, mas não se mostrou surpreso quando
descobriu que se tratava de um artefato bélico. Um simples engarrafamento se
transforma em momentos angustiantes, nunca se sabe se é excesso de veículos ou
um arrastão. Milhares de estudantes das escolas municipais ficam sem aula,
semana sim e outra também, reféns da violência e das balas perdidas.
Discordo do imortal João Ubaldo que, há muitos anos,
escreveu uma ótima crônica intitulada “A gente se acostuma a tudo”. Não, a
gente não se acostuma a tudo. Quem pode sair daqui, que saia, faz muito bem.
Faz bem à sua saúde psicológica e de seus filhos, caso os tenha, preservando-os
de tanta violência, dor, sofrimento, morte. Refazer a vida em outra cidade ou
em outro país, que seja em outro bairro da mesma cidade, é um ato de coragem.
Não é nada fácil deixar para trás pessoas queridas, memórias afetivas, a breve
história construída até aqui, jogando-se ao precipício do desconhecido.
Espero que o meu para-quedas funcione.
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