Era uma sexta-feira por volta das seis da tarde. Eu
estava com o Miguel, sentados numa pizzaria perto de casa, ele comia uma
suculenta fatia de mozzarela e bebia mate com limão. Voltávamos da arteterapia,
realmente tem surtido efeito, ele está mais calmo. Recebo a mensagem:
“Eles fizeram uma proposta”.
Ano e meio se passou desde que Renata perdeu o
emprego. Passado o impacto do soco no estômago, afinal, não imaginávamos que
isto poderia acontecer, pelo menos não naquele
momento, tanto mais que ela e sua equipe haviam ganho recentemente um prêmio dado
pela própria empresa, quer dizer, estavam dando lucro, que é o que importa na
selva capitalista (perdão a redundância), a vida seguiu. Com uma amiga,
decidiram “empreender”, verbo da moda. O tempo passou, e Renata percebeu que aquilo
não a satisfazia, não a fazia feliz nem trazia o esperado retorno financeiro
para a família. Queria trabalhar com alguma coisa que estivesse minimamente
relacionado à sua formação acadêmica e à sua trajetória profissional. Abandonou
a parceria, não a amizade.
Noites em claro, choro, sentimento de impotência, não
saber a quem recorrer, currículos ao vento, entrevistas que lhe devolviam a
esperança de retorno ao mercado de trabalho e o silêncio desesperador do
telefone nos dias seguintes, o FGTS esvaindo-se por entre os dedos e as contas.
Então, a proposta. Era uma sexta-feira, a resposta deveria ser dada até a
segunda-feira e a mudança, na semana seguinte. Que o casal passasse o final de
semana refletindo, colocando na balança os prós e os contras de tamanha
reviravolta no cotidiano familiar. Curitiba, lá íamos nós.
“Vai, Renata”, eu disse. E ela foi. Era um domingo de sol
no Rio de Janeiro, a família Sant’Anna Gruman e o vovô Jacquinho, representante
dos Gruman, seguiram pro aeroporto. Mais choro, meu e dela. O desconhecido
apavora. Miguel levou numa boa, afinal, a mamãe estava indo fazer um curso até
o final do ano...
Amanhã, faz um mês que a aventura começou. Renata vai
bem, obrigado. Adaptando-se ao trabalho, fazendo novas amizades, explorando a
cidade que, se tudo der certo, nos acolherá pelos próximos muitíssimos anos. A
saudade é grande, mas a gente se acostuma a tudo, o cotidiano, a rotina são implacáveis.
Sim, sentimos saudades, ela sente saudades, mas a separação, embora não tenha data
para acabar, não durará. A burocracia da administração pública estará ao meu
lado, preciso acreditar nisso.
Ah, lista de coisas a fazer: pesquisar escolas para o
Miguel e agendar visitas, pesquisar apartamento para alugar, pesquisar escolas
de música para que o Miguel continue as aulas de violino, pensar na melhor
maneira de comunicar ao nosso filho sobre a grande mudança pela qual nossas
vidas passarão nos próximos meses, pensar na melhor maneira de alugar o nosso
apartamento, pesquisar transportadora para a mudança, acompanhar diuturnamente
meu processo de transferência, consertar malas, atualizar a vacinação dos gatos,
preparar-me internamente para a grande travessia. Enquanto isso, durmo de
conchinha com meu filhote, que resolveu se mudar de mala e cuia pro meu quarto
e me obriga a dormir na hora que ELE quer, ou seja, nove e meia da noite as
luzes da casa se apagam.
Tenho chorado muito, aparentemente sem motivo. Mas, é
claro que tem um (ou muitos) motivo. Recentemente, levei Miguel à Sala Cecília
Meirelles. Assistimos a um maravilhoso concerto da Orquestra de Solistas do Rio
de Janeiro, os músicos fantasiados em homenagem ao dia das crianças. Quando os
violinos começaram a tocar o tema de Frozen, repito, o tema de Frozen, meus
olhos encheram-se de lágrimas. O mesmo aconteceu quando tocaram três pedaços de
Carmen, de Bizet. O mesmo acontece quando ouço James Taylor ou Simon &
Garfunkel. Talvez suas músicas estejam atreladas a acontecimentos passados que
vivemos aqui no Rio de Janeiro, como que dissessem “esse é o passado”. Luto
inevitável, necessário para seguir a travessia.
Tento racionalizar as coisas. Lembro do saudoso Gilberto
Velho, meu orientador no doutorado, antropólogo fantástico, que escreveu muito
sobre a noção de “projeto” e “indivíduo” na sociedade contemporânea. Nossa vida
é um livro em eterna construção. Estamos em constante mudança, somos
metamorfoses ambulantes, nossas biografias são atualizadas diariamente, não há roteiro
pré-definido. Projeto e metamorfose. Hoje, Rio de Janeiro. Amanhã, Curitiba. Razão
e emoção.
Viva a vida.
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