Costumo doar sangue três, quatro vezes ao ano. Doo
sempre no Instituto Nacional do Câncer – INCA, na Praça da Cruz Vermelha, região
central do Rio de Janeiro. Doo sempre lá por um motivo sentimental e porque me
dá uma sensação gostosa de ajudar o próximo, embora desconheça quem este
próximo é, isso pouco importa. Doar é um ato de amor, de desapego, de
solidariedade, de humanidade. Antes de entrar na sala da doação propriamente
dita, passa-se por um processo de triagem em que preenchemos um questionário e
pela avaliação de profissional (escrevo profissional porque se eu escrever
médico vão dizer que eu tenho que escrever médica também, ou que substitua o
masculino e o feminino pelo famigerado “médicx”, que não significa nada) da
instituição que te faz algumas perguntas básicas além de medir o nível de
hemoglobina no sangue, vai que estou anêmico. Pergunta, por exemplo, se tenho
tatuagem e se a tatuagem foi feita há menos de um ano. Também pergunta se tenho
comportamento de risco para doenças sexualmente transmissíveis. Jamais me
perguntaram se mantenho relações sexuais homossexuais, se sou sexualmente promíscuo
(neste caso, deveriam explicar o que consideram promiscuidade) e, muito menos,
relacionaram a possibilidade de eu ser gay com eventual comportamento sexual de
risco.
No Brasil, a
partir de 1993, os gays ficaram vitaliciamente proibidos de doar sangue. Em
2004, a interdição foi modificada para um período de quarentena de doze meses
após a última relação sexual. Lésbicas não entram no cálculo. Na prática, o
Ministério da Saúde inviabilizou a doação de sangue de homossexuais,
imaginando, com isso, que o risco de contaminação pelo vírus HIV diminuiria sensivelmente.
Atualmente, um homem heterossexual que tenha feito sexo sem camisinha pode doar
sangue, ao passo que um homossexual que tenha parceiro fixo e use camisinha
deve submeter-se à quarentena. Fazer sexo sem camisinha é a causa da maioria
absoluta de casos de HIV no Brasil.
Diante de tamanha incongruência, para dizer
o mínimo, a Procuradoria Geral da República, a Ordem dos Advogados do Brasil e
Organizações Não-Governamentais entraram com uma ação de inconstitucionalidade no
Supremo Tribunal Federal. Em seu parecer, a PGR afirma que a medida vigente dá
munição à homofobia, em alta por estas bandas, e questiona as autoridades do
Ministério da Saúde que sequer mencionam o uso de preservativos como meio mais
eficaz para evitar o contágio.
O relator do caso no STF, ministro Edson Fachin, já se
posicionou contrariamente à regra ao afirmar que “orientação sexual não contamina
ninguém. O preconceito, sim” e que a restrição coloca em xeque direitos
fundamentais ao usar, como critério, “grupos e não condutas de risco”. A
quarentena viola, neste sentido, a forma de ser e existir dos homossexuais e o
fundamento do respeito à diversidade e à dignidade humana. A conduta sexual do
homossexual é parte de sua identidade, não é um anexo menos importante, tanto quanto
o uso do solidéu e da longa barba dos judeus ortodoxos - os nazistas arrancavam
fora a barba dos judeus, simbolizando a extirpação de sua identidade, quer
dizer, de sua humanidade. Ou o hijab das mulheres muçulmanas. Ou o hábito das
freiras.
Felizmente, o relator já foi seguido por outros quatro
ministros. Espero que esta medida anacrônica do Ministério da Saúde caia em
desgraça para que nos afastemos um pouquinho das trevas em que parecemos moralmente
mergulhados.
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