Por volta das sete da manhã, desci para tomar um café
duplo na padaria da esquina. Em frente ao prédio, o caminhão da mudança
esperava o horário permitido pelo condomínio para começar os trabalhos de
desmonte do apartamento que foi nosso lar, doce lar, por mais de uma década. Na
verdade, já não era nosso lar. Renata há meses na república sulista, Miguel
divertindo-se na ponte aérea Rio-Teresópolis entre as casas dos avós maternos e
paternos à espera do momento de juntar-se à mãe, e eu envolto em quase duas
dezenas de caixas recolhidas nos mercados das redondezas já devidamente
preenchidas com tralhas de banheiro, papelada, brinquedos. As paredes, antes
lotadas de quadros, enfeites e pinturas, nuas. As cortinas das janelas da sala
e do quarto, baixadas. O espetáculo havia terminado. Às oito da manhã, os
funcionários da transportadora tocam a campainha.
O processo foi salpicado de pequenos contratempos,
como o indivíduo que decidiu estacionar o carro em frente à garagem destinada à
entrada e saída de caminhões de mudança, atrasando o carregamento das caixas, e
o meu desespero ao ouvir, do solícito funcionário da prefeitura, que o reboque
poderia levar ATÉ quatro horas para dar as caras, Ou quando, lembrando que os
gatos são essencialmente seres curiosos e exploradores, percebo que a
Guilhermina, nosso branquela pelancuda, não estava no meio do caos e começo a
gritar desesperado por ela porque a porta dos fundos estava permanentemente
aberta para o fluxo das caixas, eletrodomésticos e móveis para o elevador de
serviço, um convite inexorável à liberdade. Procuro em tudo quanto é quanto da
casa, já meio deserta, e nada do bichano. Saio de casa, começo a subir e descer
escadas, “Mina, Mina, Mina!!!!!”, silêncio sepulcral, nenhum miado gutural de
medo, perdi a Mina e a Renata vai me matar, penso imediatamente. De repente, gritam
lá de dentro “Ela está aqui”, havia se metido no forro da cama de casal. Ato
contínuo, fui ao bar da esquina tomar uma cerveja gelada, claro.
Em pouco mais de sete horas de trabalho ininterrupto, nossa
vida e nossas memórias estavam devidamente empacotadas e prontas para zarpar. Despeço-me
dos bravos funcionários da transportadora que encarariam uma longa jornada
rodoviária entre o Rio de Janeiro e Curitiba, para lá de doze horas de estrada.
De pé, em frente ao edifício, observo o caminhão desaparecer no horizonte.
Sento num banco do jardim, exausto física e emocionalmente, a cabeça sem forças
para pensar em coisa alguma. Subo ao apartamento, o sofá e duas cadeiras
ficaram. Olho para a parede vazia onde ficava a televisão e relembro as
centenas de vezes em que os Sant’Anna Gruman assistiam suas séries favoritas,
os jogos de futebol.
Acabo de lembrar do Lobão e uma passagem de “Vida
louca vida” que resume muito bem esta ideia de que nossa vida é um eterno
projeto inconcluso:
Vida Louca
Vida
Vida breve
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve
Olhos marejados, mas feliz.
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