Roda viva


Hospedado temporariamente na casa de meus pais, a memória viaja de volta à uma época de inocência e simplicidade. Recostado no sofá diante da televisão, um canal dedicado a velharias da Rede Globo que fizeram sucesso exibe Os Trapalhões em sua formação original, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. A abertura do programa, no formato de desenho animado, me emociona. Lembro-me perfeitamente da família Gruman aboletada na cama de casal aos domingos, pontualmente às sete horas da noite, quando o quarteto bufão entrava em ação. Durante uma hora o riso corria solto. Ia ao ar antes do Fantástico e sua zebrinha da “coluna do meio”, que me dava arrepios. O que falar, então, da Escolinha do Professor Raimundo, que também passa nesse canal nostálgico? Era aos sábados à noite, se não me engano após a novela das oito quando a novela era realmente “das oito”, e a família Gruman novamente se aboletava na cama de casal ao voltar da tradicional pizza romana (mussarela, rodelas de tomate, pimentão e cebola) e do sundae de chocolate do há muito falecido Restaurante Ponto 13, na Rua das Laranjeiras.

Em volta da mesa do almoço de domingo, outras lembranças brotam das profundezas da memória afetiva, desta vez associada a acontecimentos esportivos. A família Gruman se dava ao luxo de passar alguns dias do ano descansando num hotel fazenda a duas horas do Rio de Janeiro. Numa dessas vezes, assisti a estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1986 diante da forte seleção espanhola, do excelente goleiro Zubizarreta e do também extraordinário atacante Butragueño. Jogo duríssimo, lá e cá. Os espanhóis tiveram um gol mal anulado quando o placar marcava, ainda, zero a zero. Aos 17 minutos do segundo tempo, Careca manda um petardo que explode no travessão, encontrando no rebote o Doutor Sócrates, que só tem o trabalho de cabecear a bola para o fundo das redes. Já de volta ao Rio de Janeiro, ainda durante aquela Copa do Mundo, revejo mentalmente o suplício do confronto com a França de Platini. A memória, talvez traiçoeira, talvez não, me diz que eu estava sozinho no quarto dos meus pais, em frente à televisão, quando Zico desperdiça aquele maldito pênalti quando o placar marcava um a um, e eu comecei a chorar copiosamente.

É curiosa coincidência. Voltar para a casa dos pais, rever programas televisivos de quando era criança, lembrar de fatos ocorridos precisamente neste período. Anos 1980. A memória é um bicho vivo, seletivo. Sinto uma saudade boa dessa época, tirando o gol perdido do Zico. A pizza da Confeitaria Itajaí acompanhada do casco de vidro de um litro de Coca Cola e que dava perfeitamente para nós quatro, a piscina do clube Hebraica, o banho de mangueira, a dormida de final de semana na casa dos avós, o almoço de domingo com os avós, as festas americanas e a indefectível dança da vassoura, a pioneira programação esportiva dominical da TV Bandeirantes que iniciava às onze da manhã com a transmissão do campeonato italiano de futebol na voz de Silvio Luiz e comentários de Silvio Lancelotti.

E, de repente, crescemos, fazemos faculdade, conseguimos um emprego, juntamos os trapos com um certo alguém – olha aí o Lulu Santos resolvendo dar as caras, outro ícone desta memória audiovisual -, temos um filho e a vida te apresenta alternativas surpreendentes. Resolvo apropriar-me culturalmente do Chico Buarque. Minha vida, neste momento, assemelha-se bastante a esta estrofe da magistral Roda Viva:

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá.   

Quem diria. Curitiba...



Comentários

Unknown disse…
Nada como escrever conectado com o coracao..Lindo heartfelt texto.
Sandra Pinto disse…
Que maravilha você ter essa oportunidade de reencontrar esse lugar de afeto com sua família. Memórias bonitas que estão dentro de você e são parte da sua personalidade. Em tempos de mudanças acessar nossa criança interna nos fortalece.