Ilusão de ótica



Logo que se chega à Curitiba, somos alertados sobre o frio inclemente que castiga os ossos, sobre a necessidade imperiosa de comprar aquecedores para a casa, cobertores elétricos para suportar as madrugadas geladas, calças térmicas, pulôveres, secadoras de roupas, estas imprescindíveis porque, com temperaturas muito baixas, calças jeans e demais itens do vestuário podem levar mais de uma semana para voltar ao armário. O alerta é mais incisivo ainda quando o interlocutor descobre que somos cariocas, acostumados a deitar e levantar empapados de suor a qualquer época do ano, mal acostumados ao uso de ventilador e ar condicionado. Em Curitiba, dizem-nos os “da gema”, a conta de energia elétrica é, ao contrário da outrora cidade maravilhosa, altíssima no inverno, não tão alta no verão.

Outro alerta, e este dado, geralmente, por forasteiros que resolveram desbravar a república sulista, diz respeito a um suposto conservadorismo moral da população local e uma desconfiança arraigada em relação a tudo e todos que vêm de fora, raiando as beiras da má-educação e  do mau humor. Um paulista que conhecemos dias atrás e que mora por estas bandas há mais de uma década, foi mais explícito. Afirmou categoricamente que a dificuldade de integração à sociedade curitibana é mais acentuada no caso de paulistas e cariocas, ambos associados ao delito, ao crime, à violência. Aos cariocas, adiciona-se a malandragem como mais uma característica indesejável. Mas, continuava nosso conhecido paulista, se conseguirmos agüentar o primeiro ano, tudo vira um mar de rosas, os curitibanos, uma vez amigos, são sempre amigos, amigos para sempre, pacto de sangue.

Fiquei pensando na construção de imagens que fazemos de nós mesmos e dos outros, na forma como queremos nos ver no espelho e que gostaríamos que os outros nos vissem no espelho, ou seja, na forma que construímos nossas identidades e queremos que os outros nos reconheçam como portadores de tais ou quais características. 

Muitas vezes, há uma incompatibilidade entre a visão interna (“nós”) e a visão externa (“eles”). Muitas vezes, uma determinada característica é exacerbada para todo um grupo social, ainda que nem todos os membros deste grupo exibam tal característica,  aquilo que comumente chamamos de estereótipo. Nem sempre o estereótipo é uma característica negativa, que chamamos de estigma, mas é uma generalização bastante questionável. Digamos que é uma “preguiça” que os seres humanos têm para classificar o mundo ao seu redor, é mais fácil colocar tudo num saco, sob uma mesma categoria, do que identificar particularidades e complexificar a realidade. Branco ou preto, nada de cinza.

Dois exemplos que desafiam os estereótipos carioca e curitibano.


Desde que cheguei, não vivi qualquer situação de constrangimento por ser carioca de origem, identidade dificilmente escamoteada tão logo abro a boca e começa a puxar o erre e soltar umas gírias típicas. Cansei de papear com taxistas “da terra”, um deles me indicou o próprio pai, relojoeiro de primeira qualidade, quando soube que tinha um carrilhão precisando de manutenção. Atendentes de lojas, prestadores de serviços, todos bem educados, muitas deles exibindo um sorriso, talvez automático e involuntário, mas pouco importa. Sabendo que sou recém-chegado, não raro desejam boa sorte na nova vida e garantem que vou gosta muito da cidade. Exceções que confirmam a regra? Duvido.

E o que dizer da malandragem carioca? Um taxista vaticinou que Miguel fará sucesso com as meninas da escola, com o sotaque inconfundível e a malemolência do “garoto carioca, suingue sangue bom”, cantado pela Fernanda Abreu (está certo, é “garota carioca”, mas cadê a liberdade poética?). Malandragem do bem, o bom vivant. Outro dia, um colega de turma da escola se vira pra mãe no meio do jantar e manda: "morrrrdi um pedaço de carrrrrrne com muita gorrrrrrdura" porque, a partir de agora, quer falar bonito que nem o amigo imigrante recém chegado. Duas semanas de aulas e já convertendo os locais curitibanos à irresistível ginga lingüística carioca.

Viva o cinza.



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