É um exercício interessante tentar entender quem são
os eleitores de Jair Bolsonaro, alcunhado de “mito” por seus fervorosos
seguidores.
Não é possível reduzir a realidade social num punhado
de categorias, isto está claro, mas podemos utilizar a ideia de “tipo ideal” do
sociólogo Max Weber como meio de interpretar o contexto histórico em que
vivemos. O “tipo ideal” é normalmente uma
simplificação e generalização da realidade. A partir desse modelo, é
possível analisar diversos fatos reais como desvios do ideal, permitindo-nos
ver se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos se
aproximam de uma de nossas construções, determinar o grau de aproximação do
fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. É, portanto, um recurso
técnico, uma construção mental da realidade, porque selecionamos um certo
número de característica do objeto em estudo a fim de construir um tipo.
Dito isto, vejamos os “tipos ideais” que
compartilham, em maior ou menor grau, das ideias do candidato de
extrema-direita que vem liderando as intenções de voto no primeiro turno das
eleições presidenciais na república bananeira.
O
envergonhado: é aquele que em momento
algum declara seu voto abertamente, embora se utilize da estratégia do
“whataboutism”, de responder a uma crítica com outra crítica em sentido
contrário, com argumentos centrados em ações iguais ou similares levadas a cabo
pelo indivíduo que criticou inicialmente, para “entregar” suas preferências
eleitorais. Ele não refuta as acusações contra seu candidato, preferindo acusar
os adversários dos mesmos crimes. “Ah, ele disse isso sobre a tortura? Mas o
que dizer, então, do Che Guevara?”. É o típico lobo em pele de cordeiro, que
deita discurso sobre a importância da liberdade de expressão, das liberdades
individuais, da tolerância com quem pensa diferente para justificar a
legitimidade de quem atua contra a liberdade de expressão, as liberdades
individuais e a tolerância com quem pensa diferente. É o tipo mais traiçoeiro.
O violento: é aquele que tem como slogan preferido o velho e cansado
de guerra “bandido bom é bandido morto”, que é a favor da redução da maioridade
penal, que é a favor do porte de armas pelos “cidadãos de bem” como forma de
proteção contra a bandidagem. O violento é a favor de dar “carta branca” à
polícia para que “execute o serviço” sem maiores entraves jurídicos, tipo o
Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal, resolvendo o imbróglio
no momento da confusão mesmo, a Justiça mais atrapalhando que ajudando,
direitos humanos é coisa de comunista. O violento não percebe, porque lhe falta
senso crítico, que o abuso de autoridade serve tanto para execuções sumárias quanto
para o achaque numa blitz policial, ou seja, atinge tanto o bandido quanto o
mocinho. Ele também não acha de todo ruim o uso eventual da tortura como forma
de extrair informações que levem a cúmplices de crimes, ou simplesmente como
forma de punir o criminoso, o equivalente na vida adulta à palmada que crianças
recebem como “corretivo” às malcriações. O violento também não gosta muito de
ser questionado sobre suas escolhas, mesmo porque não consegue dissertar
extensamente sobre os motivos pelos quais vota em quem vota- “eu sei, mas não
lembro”-, faltando-lhe capacidade argumentativa. É lícito imaginarmos que o
violento carrega em si uma violência ancestral, talvez fruto de algum trauma de
infância, raiva da vida, frustrações afetivas, profissionais.
O
militarista: é aquele que cresceu num
ambiente militar, comumente estudou em colégios militares e compartilha, pela
introjeção dos valores e crenças subjacentes a este ambiente, de uma lógica
positivista, intransigente, unidimensional da realidade. Exerce uma espécie de
solidariedade orgânica com seus pares, seus colegas de farda, não consegue
imaginar-se “traindo a causa”. Geralmente se refere à Ditadura Militar como
“revolução”, nega peremptoriamente que tenha havido torturas como política de
Estado, afirmando que houve, sim, uma guerra contra subversivos que queriam “implantar
o comunismo no Brasil”. Questionado sobre quem foi o “subversivo” Vladimir
Herzog, ou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra ou o que foi o famigerado
Ato Institucional nº5, dá de ombros e manda descer outra rodada de loura
gelada. Afirma, inclusive, que durante a “revolução” não houve corrupção,
esquecendo-se de dizer que a corrupção era invisível porque vigia a censura nos
meios de comunicação. O militarista tem preguiça de pensar, tem medo do
contraditório, acha mais fácil bater continência, “sim, senhor”, “não,
senhor”. Pensar cansa.
O
intolerante: é aquele que acredita em
“ideologia de gênero”, que sonha com a Escola Sem Partido porque nunca ouviu
falar de Paulo Freire e sua frase lapidária “Não existe imparcialidade. Todos
são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é
inclusiva ou excludente?”, que reproduz o conto da carochinha de que circula
por aí um tal de “kit gay” que ensina crianças inocentes a ter sexo ou a “ser
gay”. Adora dizer que aceita o diferente, especialmente aqueles indivíduos que
constroem relacionamentos afetivo-sexuais “heterodoxos”, “mas isso lá em casa
não entra, não”. Ele nega seu racismo dizendo que tem ancestrais negros ou
indígenas ou que namora uma negra, exceção que confirma a negra obviamente,
salvo-conduto para atitudes racistas. Acha que mulher não pode ter amigo homem
porque o homem, por sua constituição fisiológica, “só pensa naquilo” e, mais
hora, menos hora, vai dar em cima da esposa ou da namorada. Tampouco concorda
que mulher pode usar qualquer roupa “porque quem procura acha” e, neste caso,
um estupro estaria mais do que justificado porque não dá para reprimir os instintos
selvagens masculinos. Acredita que o homem tem de jogar bola e a mulher deve
concentrar esforços na “criação” dos filhos. A paternidade e a maternidade,
para o intolerante, são determinadas pelo órgão sexual do indivíduo, ignorando
que o importante mesmo é o amor incondicional entre os membros do clã e que a
transmissão de valores caros à educação humanista independe da constituição
física do papai ou da mamãe ou do vovô ou da vovó. E que referências paternas e
maternas são mais simbólicas que físicas, são exemplos a serem seguidos, e isso
não é consequência da posse de um pênis ou uma vagina. Concorda com seu
candidato à presidente que os quilombolas são vagabundos mamando nas tetas do
Estado, que os indígenas são indolentes, que mulheres feias “nem merecem ser
estupradas”. Acha o Ministério da Cultura uma perda de tempo, cidadania
cultural é papo-cabeça de maconheiro antropólogo, porque o Estado não tem que
gastar seus parcos recursos com manifestações culturais pelas quais “ninguém se
interessa”, jogando na lata de lixo o artigo 215 da Constituição Federal. Bom
mesmo é a cultura de massa e o que o mercado coloca nas prateleiras do
supermercado cultural. Como diria
Sartre, o intolerante, tal qual o antissemita, é atraído pela “constância das
pedras, maciças e impenetráveis”.
O masoquista: é aquele que
consegue, a duras penas, pagar o aluguel de um quarto e sala em Copacabana
porque não abre mão de realizar o sonho de morar perto do mar, ainda que, para
isso, tenha de cancelar o plano de saúde e a escola particular dos filhos.
Revive a Utopia Urbana, clássico etnográfico do antropólogo Gilberto Velho de
meados da década de 1970. Dificilmente poderia ser enquadrado naquilo que
entendemos por “classe média”, talvez uma “baixa classe média” ou uma “alta
classe baixa”, demasiadamente orgulhoso para admitir o descenso social,
evitando qualquer sentimento de solidariedade com quem partilha das mesmas
dificuldades econômicas. É o taxista que perdeu a clientela por conta de
aplicativos do tipo Uber ou o motorista do Uber que, outrora, atuava
profissionalmente na carreira em que se formou na faculdade, engenheiros,
professores, médicos, arquitetos, jornalistas. Ambos extravasam sua frustração
em bodes expiatórios, sem entender que o alvo é tão vítima quanto eles. É
saudoso do tempo em que frequentava restaurantes nos finais de semana e
conseguia pagar a cota do clube onde curtia a piscina em dias de sol e tomava
Coca-Cola, nada dessas marcas próprias dos supermercados, esses genéricos
“cola” que os farofeiros levam à praia no isopor recheado de sanduíches de
frango com maionese. Come frango e arrota caviar. Acredita piamente que “quem é
rei, nunca perde a majestade”. Por outro lado, desconhece qualquer ponto do
programa de governo do seu candidato à presidente que trate da criação de
empregos e do combate à inflação.
O avestruz: é aquele que resolve ignorar o discurso do ódio e da
intolerância por algum tipo de interesse particular ou, de forma genérica, acredita que o seu
candidato vai mudar “tudo isso que está aí”, seja lá o que isso signifique,
extravasando sua frustração e desencanto com a política numa retórica da
violência que, sem dúvida alguma, em algum momento, descambará para a violência
física. Em nome da guerra contra a esquerda política, o avestruz trai sua
própria história, sua própria identidade, a memória coletiva que informa parte
importante de quem ele é, vítima, em passado não tão longínquo, do mesmo
discurso do ódio e da intolerância que observa hoje, da janela, direcionado a
grupos sociais pelos quais nutre uma indiferença homicida. Este personagem leva
o relativismo moral ao extremo. O avestruz se enquadra perfeitamente na letra
da música “E não sobrou ninguém”, da banda de rock paulistana Vespas
Mandarinas:
Primeiro levaram os
negros
E eu não me importei
Porque eu não sou
negro
Depois levaram os
gays
E eu não me importei
Porque eu não sou gay
(...)
E na noite seguinte
Levaram tanta gente
Que eu nem sei
Idosos, mulheres,
crianças
Mas de novo eu não me
importei
E então chegou o dia
Em que finalmente vieram me
levar
Eu não sabia que essa hora
ia chegar
Como eu não me importei com
ninguém (com ninguém)
Por que que alguém ia se
importar?
Alguém ia se
importar?
Enquanto tipos ideais, dificilmente encontraremos
estes personagens em estado puro. Mais razoável imaginarmos a composição de uma
ou várias características de cada um deles, tendo por resultado uma miríade
praticamente infinita de Frankensteins, um exército de Frankensteins, um
caleidoscópio sinistro que transforma o Golem num conto de fadas.
Resistir é
preciso.
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