Tortura





Mirta Graciela Antón, também conhecida como “La Cuca”, é a única mulher, na América Latina, condenada à prisão perpétua por crimes contra a Humanidade. Ela foi considerada culpada por doze homicídios, dezesseis privações ilegais de liberdade, vinte e um casos de tortura, cinco desaparecimentos e seis abusos, todos estes crimes cometidos durante a Ditadura Militar que aterrorizou a Argentina entre os anos de 1976 e 1983. Os testemunhos que dão conta da perversidade, sadismo e amoralidade da ex-policial são perturbadores e nauseabundos.

"Ela esticou as mãos como garras, pegou meus mamilos e apertou. Apertava e torcia; torcia e apertava"

"Ela me pisava nos testículos com os saltos. Era uma louca, também pisava nos que estavam ao meu lado. Eu escutava o barulho e pensava: 'Estamos ferrados, lá vem a mulher dos saltos agulha'"

Confesso que, ao ler este último depoimento, senti calafrios. Quem joga futebol sabe que, de vez em quando, uma bolada nas “partes baixas” é acidente de trabalho, e que, segundos depois do impacto, uma dor aguda surge do nada, vemos estrelinhas acima da cabeça como nos desenhos animados, e é preciso respirar fundo, ficar quietinho, parado, esperar pacientemente que esta sensação desagradabilíssima vá embora. Neste momento, a solidariedade masculina entra em cena e o próprio algoz, cuja vítima permanece estirada no chão, dá uma ajuda. Não é à toa que, numa cobrança de falta, os jogadores da barreira colocam as duas mãos, estrategicamente, à frente do saco escrotal para evitar desastre maior, amortecendo o impacto da bola.

Imaginar um salto alto pisando deliberadamente os meus testículos ou os alheios, porque quem pisa sente prazer no ato, porque a vítima é considerada “subversiva”, “terrorista” ou “criminosa” simplesmente por pensar diferente do que “manda” o governo de turno, por mais perturbador que seja, é perfeitamente factível em regimes políticos autoritários. Compreensivelmente, os primeiros cidadãos a sofrer com a censura e a tortura são os artistas e os intelectuais, via de regra criativos e contestadores do status quo, seja ele qual for.  

Identifiquei-me de imediato com o texto que o escritor Antônio Prata publicou recentemente no jornal Folha de São Paulo, intitulado “Imagina eu num pau de arara?”. No caso de uma eventual nova ditadura no Brasil defendida pelo candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro, Prata diz ser o típico sujeito que vai para o pau de arara – método de tortura que consiste numa barra de ferro atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, colocada entre suas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 a 30 centímetros do solo - ou “desaparece”, metáfora para o assassinato.

“Eu não sou petista. Sou, como escrevi anos atrás, ‘meio intelectual, meio de esquerda’, hoje com inegável viés ‘meio coxinha, meio burguês’, mas neste tipo de noite que se aproxima todos os gatos são rubros e até explicar que focinho de porco não é tomada um fio desencapado já pode estar ligando meu intestino à hidrelétrica de Itaipu”

Minha identificação com o texto do Antônio Prata passa um pouco por eu ser também “meio intelectual, meio de esquerda hoje com inegável viés ‘meio coxinha, meio burguês’”. Antropólogo, tenho por obrigação profissional e visão de mundo pessoal o hábito de questionar as certezas da vida, inclusive as minhas - essas são as mais difíceis de abrir mão, confesso -, relativizando verdades, estranhando o familiar, aproximando o estranho, colocando na roda o etnocentrismo inerentemente humano. Sem falar em minha condição judaica, questionadora por natureza, como diz a máxima: “dois judeus, três sinagogas”.

Não é possível transigir com o discurso do ódio e da intolerância. Não é possível achar graça ou levar na brincadeira a publicação de uma simulação de tortura, não coincidentemente, pelo filho de Bolsonaro em sua página pessoal nas redes sociais, ele mesmo vereador na cidade do Rio de Janeiro, afrontando inclusive a Constituição Federal que, no inciso III do artigo 5º, afirma que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

É perturbador constatar que muita “gente de bem”, que põe os filhos para dormir a cada noite, que lhes deseja uma boa noite de sono e que sonhe com os anjinhos, não se furtaria ao “dever cívico” de extirpar o inimigo interno usando os piores métodos de tortura, dando vazão a instintos sádicos nem mesmo presentes nos animais. Animais não torturam, matam de uma vez. Ser contra a tortura não é ser de esquerda ou de direita, é ser humano, por mais desumano que seja o opositor.  

Como Prata, neste pesadelo não tão longe da realidade, eu também seria torturado. 






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