Quando você fez cinco meses, sua mãe teve de voltar ao
trabalho. A licença-maternidade e as
férias haviam terminado. Muitos pais temem colocar seus filhos, criaturinhas
ainda tão indefesas, numa creche antes de um ano de idade, temerosos das
inúmeras viroses que circulam por aí. Sorte a sua e sorte nossa, você sempre
teve uma boa saúde, seu sistema imunológico sempre deu conta do recado, salvo
aqueles resfriadinhos de praxe, nada grave. Na creche que escolhemos, você
sempre foi bem tratado, a chefe das cuidadoras era uma senhora gentil, passava
uma sensação de segurança que nos deixava, pais, mais tranquilos para seguirmos
nossa rotina de trabalho até a hora de te buscarmos no final do dia. Daí o
choque quando recebemos a trágica notícia de sua morte, num acidente de
trânsito.
Você crescia, e nós começamos a pensar se valia a pena
continuar sua trajetória escolar ali, nos questionávamos sobre a orientação
pedagógica mais à frente, se estava de acordo com nossos valores progressistas,
humanistas, de formação de um cidadão consciente, responsável. “Batemos o
martelo” numa reunião da direção da escola com os pais, uma espécie de
prestação de contas, onde os representantes da escola pretendiam explicar o
trabalho desenvolvido em cada segmento, as perspectivas para o ano seguinte, e
os pais tinham a liberdade de tirar dúvidas diversas e, até, questionar a
metodologia utilizada pelas professoras. Naquela reunião, decidimos tirá-lo
dali. Enfatizou-se, sobretudo, a eficiência nos exames vestibulares e deixaram
implícito que, os pais incomodados com qualquer ponto metodológico, estavam
livres para seguir outro rumo, em outras palavras, as portas da rua sendo
cortesia da casa, ou melhor, da escola.
Ficamos felizes quando recebemos a notícia de que sua
vaga estava garantida numa outra escola perto de casa, frequentada pela classe
média intelectualizada das redondezas, artistas, professores, profissionais
liberais, enfim, gente, a princípio, com um pensamento parecido com o nosso, sobretudo
de formação de um sujeito crítico, reflexivo, capaz de interpretar sua
realidade a partir de princípios democráticos e inclusivos, de respeito às
diferenças. Os muros internos da escola estavam pintados por alunos das várias
séries com representações bem-humoradas sobre igualdade de gênero, crítica ao racismo
e à ditadura, que os negacionistas chamam de “revolução”. Não havia uniforme, a
ideia era valorizar a “individualidade qualitativa” de cada aluno, sua
criatividade. Sobre regimes autoritários, inclusive, a escola realizava,
anualmente, a “descomemoração” do golpe militar que implantou a ditadura no
Brasil em 1964, com direito a aula pública. Os pais dos seus amigos mais
próximos eram, em sua quase totalidade, petistas ou simpatizantes, e quando
estourou o escândalo de corrupção na Petrobrás, envolvendo dirigentes do
Partido dos Trabalhadores e funcionários da estatal, ficamos incomodados com a
intransigência de alguns desses pais em aventar a possibilidade de que fossem
verdadeiras as acusações, imediatamente rotulando os acusadores de “coxinhas”. Nessa
época, foi amplamente difundido um vídeo em que a filósofa Marilena Chauí,
intelectual orgânica petista, dizia odiar a classe média, a mesma classe média
da qual, acredito, ela faz parte e faziam parte os seus ex-colegas de escola,
embora essa declaração houvesse sido contemporizada e relativizada por seus
pais. A autocrítica não era o forte daquele pessoal. Mas foi um período muito
bacana para você, e para nós também.
Então, enfrentamos dificuldades financeiras e nos
defrontamos com a contradição de reproduzirmos, por um lado, o discurso que
defende a presença do Estado como garantidor dos direitos fundamentais do
cidadão – a educação sendo um destes direitos, claro – e, por outro, relegarmos
a segundo plano a educação pública em favor do ambiente asséptico, da “bolha
ideológica” das escolas particulares. Rompemos a bolha e você foi estudar numa
escola municipal. Nela, você foi apresentado ao violino, tinha duas aulas
semanais. Na sua sala de aula, havia colegas de várias tonalidades de cor de
pele e origens sociais. Você aprendeu a almoçar antes das onze horas da manhã!
Passou a usar o uniforme oferecido pela prefeitura, e eu achava o máximo quando
cruzávamos com outras crianças na rua portando o mesmo uniforme, como que
compartilhando uma identidade em comum, embora você sempre dissesse que, se não
eram os seus colegas da escola, não eram “iguais”. Sentiu ciúmes do seu pai,
que se dispôs a ensinar futebol de botão aos colegas, resgatando uma velha
brincadeira analógica em tempos digitais.
Nada de ar condicionado em dias de calor, o papel higiênico ficava na
secretaria para maior controle evitando o desperdício, doação de resmas de
papel ofício eram sempre bem-vindas. Funcionários e professores dedicados e orgulhosos
de seu papel de educadores. Você ficou conhecido como “o menino da escola
particular” e isso nos incomodou profundamente porque era uma fronteira que
queríamos romper.
Mudamos de cidade e você, também de escola, pela
quarta vez. Voltamos à “bolha”, por insegurança, talvez. Ou medo, ou covardia,
ou hipocrisia. Você se readaptou muito bem, logo estava convidando colegas de
sala para brincadeiras num sábado à tarde qualquer. Na comemoração do seu
aniversário, vários deles te prestigiaram. Quando eu chego para te buscar,
quando a professora já está apagando do quadro negro a matéria do dia, você
sempre pede para ficar mais um pouquinho porque está no meio do jogo sei lá do
que. Dia desses, pediu para chegar bem cedo, queria ser o primeiro. Você não
imagina como eu me sinto bem, sabendo do seu bem-estar nas muitas horas em que
é obrigado a ficar na escola, bem sei que há dias – muitíssimos dias - que a
vontade de ficar em casa vendo desenhos na televisão é intransponível. Aos
poucos, fomos conhecendo os pais dos seus colegas e isso me angustia porque um
monte deles é conservador e transmite aos filhos sua visão de mundo retrógrado,
provinciana, elitista e coalhada de preconceitos, estereótipos e intolerância. E
que “ter é ser”, o legal é a chuteira da Nike. Quando você contou aos colegas
de sala de aula que havia estudado numa escola pública, a reação foi de espanto
e reprovação, imagino que certo nojo, uma contaminação indesejável ao ambiente
social e moralmente superior de quem tem grana para bancar o ensino privado.
Escola pública é para pobre, preto e simpatizantes. Daniel na cova dos leões.
Meu filho, peço perdão se nossas escolhas te pareçam
esquizofrênicas. Os crentes costumam dizer que tudo nessa vida tem uma
explicação e que tudo tem uma razão de ser. Como você sabe, eu sou um descrente
convicto, mas concordo que nossas experiências mundanas são campo fértil para a
construção de nossa visão de mundo, de nossa identidade, de como nos vemos e
queremos ser vistos pelos outros, de nossas máscaras sociais, e que quanto mais
experiências, maior o leque de possibilidades, maior o cardápio daquilo que
queremos para a nossa vida e, também, por oposição, maior o cardápio daquilo
que queremos longe de casa.
Você é um cara sensível, tem bom coração, é solidário
à dor alheia. Lembra daquela vez em que, no metrô, um senhorzinho cego e de
cadeira de rodas entrou no vagão, acompanhado por um jovem, seu filho, quem
sabe, e você começou a chorar? Nem sei se o senhorzinho estava sofrendo, mas
entendi o que VOCÊ sentia no momento e aquilo me enterneceu. E o seu
engajamento na distribuição de quentinhas de Natal para os sem-teto? Use essa
sensibilidade para semear o amor, não o ódio. O respeito, não a intolerância. O
diálogo, não a intransigência. Prefira as flores, não as armas. Beije e abrace
muito, muito, e quem você quiser. Não esqueça dos seus pais, é claro. Não
morda, assopre. Eu sei que é tentador, mas não prefira o lado negro da força. Leia, leia, leia muito, que é a melhor defesa contra o caos, a
ignorância, a brutalidade e a estupidez. Abra a mente às novas ideias.
Questione, questione sempre, não bata continência, honre sua herança judaica,
que tem no “por que” sua palavra de ordem.
Seja feliz.
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