Meu filho gosta de jogar futebol. Ganhou de presente
de aniversário da tia uma bola novinha. Mal acostumado a ter o pai como
parceiro de chutes descalibrados sempre que dá na veneta, na pequena quadra
multiuso do condomínio, fez o convite dia desses. Calçou a chuteira velha de
guerra, já toda estropiada, apesar do relativamente pouco tempo de uso, embora
intensíssimo, e deu início às tentativas, geralmente infrutíferas, de colocar
em prática os dribles aprendidos na escola ou com o próprio pai, especialmente
o clássico “elástico” criado por mestre Rivelino. Eternamente insatisfeito,
sempre pede “só mais um gol” depois de o pai decretar o fim da partida porque é
hora de voltar para casa, tomar banho e jantar.
A última vez em que batalhamos a batalha dos
pernas-de-pau foi no dia posterior ao primeiro turno das eleições
presidenciais. Bola para cá, bola para lá, meu filho puxa conversa. Comenta que
muitos coleguinhas de turma dizem que vão votar no candidato da
extrema-direita, Jair Bolsonaro, no segundo turno. Acho graça e respondo a ele
que os coleguinhas, por mais politizados que sejam, ainda não podem votar. Digo
que, possivelmente, os pais desses coleguinhas vão votar em Bolsonaro e que os
coleguinhas estão reproduzindo, em solidariedade, os desejos, valores e crenças
dos pais. Até aí, nada de mais, porque os pais ensinam aos filhos aquilo em
acreditam ser o certo. Então, travou-se o seguinte diálogo:
- Papai, um amigo me contou uma brincadeira que o pai
dele ensinou para ele.
- Ah, é, meu filho? E como é essa brincadeira?
- Quantas
letras tem a palavra “Deus”?
- A palavra “Deus” tem quatro letras.
- E quantas letras tem a palavra “família”?
- A palavra “família” tem sete letras.
- E quantas letras tem a palavra...
- (Já imaginando o que vinha pela frente, arrisquei) “Pátria”,
meu filho?
- Não, não é “pátria”...
- Tem certeza? Acho que é “pátria”. Digamos que seja,
meu filho. Como segue a brincadeira?
- Quantas letras tem a palavra “pátria”, então?
- A palavra “pátria” tem seis letras.
- E quanto dá a soma disso tudo?
- Ah, entendi, meu filho! A soma dá 17, que é o número
do Bolsonaro, né?
- É isso mesmo. Agora, papai, tira o número de letras
da palavra “Deus”. E quanto fica?
- Fica 13, que é o número do candidato do PT.
- É. Ele fica sem Deus. Deus não está com ele.
Respirei fundo. Minha primeira reação foi responder àquela
“brincadeira”, mas achei melhor curtir o momento futebolístico, pensar
calmamente no que dizer em resposta ao discurso das trevas e da intolerância
dos “cidadãos de bem”. Já de banho tomado e barriga forrada com sanduíches de
pão francês, requeijão e presunto – dos seus preferidos, como o Chaves – meu
filho teve a paciência de escutar a nossa versão da História.
Teve a paciência de ouvir que o candidato da
extrema-direita defende a tortura, e que a tortura não é simplesmente machucar
uma pessoa, mas machucá-la com requintes de crueldade, e que é uma coisa que
nem os animais fazem. E que a tortura é usada por gente intolerante que não
aceita opiniões distintas da sua. E que o candidato da extrema-direita defende
a ditadura, e que a ditadura é um governo que não deixa você pensar e falar o
que pensa se o que você pensa e fala não condiz com o que o governo diz que é o
“certo”. Censura.
Teve a paciência de ouvir que o candidato da
extrema-direita, certa vez, resolveu pesar um indivíduo negro com uma medida
utilizada para gado, comparando, ou melhor, rebaixando, indivíduos de pele
escura à condição de animais.
Teve a paciência de ouvir que o candidato da
extrema-direita não tem muito apreço pelas mulheres, já que mereceriam receber
um salário menor que os homens.
Teve a paciência de ouvir que o candidato da
extrema-direita acha que homossexuais são indivíduos doentes, assim como os
judeus, grupo do qual seu pai faz parte, eram considerados um “câncer” a ser
extirpado da sociedade alemã durante o regime hitlerista porque eram inferiores
aos alemães “puros”, e que os homossexuais merecem “tomar porrada” para, quem
sabe, retomarem o caminho da normalidade heterossexual.
Teve a paciência de ouvir que seu pai e sua mãe não
compartilham dessas posições, muito pelo contrário. Que nada é melhor que a
democracia; que não se mede a bondade, a honestidade, a ética de uma pessoa
pela cor de sua pele; que os homens não são melhores que as mulheres e que
ambos devem ter direitos e deveres iguais perante a lei; que as pessoas devem
ter a liberdade de amar quem bem entenderem, seja alguém com órgãos genitais
diferentes dos seus ou com os mesmos órgãos genitais, e que o importante é o
amor e a felicidade, e que a família não é formada apenas por “pai, mãe e
filhos” e que famílias podem ser formadas por duas mães ou dois pais ou por
apenas uma mãe ou um pai e que a transmissão de valores fundamentais à vida
numa sociedade democrática e inclusiva independe da constituição fisiológica de
quem transmite esses valores.
Ouviu também que o governo – é mais fácil falar de
“governo” do que de “Estado” - não tem que ter uma religião, mas tem o dever de
defender o direito de quem tem uma religião de exercê-la quando e onde bem
entender, tanto quanto deve defender o direito de quem NÃO tem religião alguma de continuar não tendo, o que significa,
portanto, que a falta de Deus ou de religiosidade não relega esses indivíduos
ao fogo eterno do inferno. Que a mistura de religião e política é sempre, SEMPRE, danosa, sempre antidemocrática.
Ouviu sobre a Inquisição na Espanha e em Portugal, antes mesmo do Brasil ser
descoberto.
“Brasil Acima de Tudo”. “Deus, Pátria e Família”. Luta
inglória essa nossa de educar os filhos para a liberdade, a igualdade e a
fraternidade num contexto social contaminado por ideias que representam o
“outro” como indigno de sobreviver no mesmo espaço físico ou, no limite,
simplesmente sobreviver. É preocupante e angustiante imaginar que uma geração
inteira está sendo formada intelectualmente a partir de preconceitos e
estigmas, de uma visão de mundo excludente, intolerante e violenta.
Resiliência.
Comentários
Sad days...
Força Marcelo, força Renata, força Miguel
Abraço