Num chuvoso final de tarde de domingo, fui
pegar meu filho na festa de um colega. Lá chegando, conheci a mãe, muito
simpática, errei seu nome involuntariamente, o nome que recebi no telefone
celular estava errado. Nada grave. Depois de uns minutos sem sinal do moleque,
a simpática senhora sugere:
- Entra lá, para cumprimentar o pai do X!
“Lá” era um pequeno salão de festas, com
algumas mesas e cadeiras e uma cozinha onde os pequenos convidados podiam se
servir de refrigerantes e salgadinhos. Numa das mesas, o pai do amigo
conversava com um homem. Fui até lá, me apresentei, o pai do amigo, simpático
como a mãe, retribuiu o cumprimento, me pediu para sentar na cadeira que
restava vazia enquanto pegava mais uma cerveja gelada e um copo.
Ele volta para a mesa, abre a latinha,
enche o meu copo e faz o brinde:
- Ao Bolsonaro, no primeiro turno!
Num primeiro momento, pensei que fosse um
chiste, uma brincadeira, tanto mais que o brinde foi proposto com uma quase
gargalhada. Depois do susto inicial, percebi que não era piada coisíssima
nenhuma. Ainda bestificado, vai saber lá o porquê do espanto diante do
descalabro em que vivemos, pergunto ingenuamente:
- É sério isso? Vocês são eleitores do
Bolsonaro?
Aparentemente mais bestificados do que eu,
sem compreender a pergunta sem sentido, os dois respondem com outra pergunta:
- Claro! Só ele para dar um jeito “nisso
aí”.
Então, o homem que acompanhava o pai do aniversariante
me exibe orgulhosamente a imagem do candidato da extrema-direita estampada na
camiseta branca, imagem que eu não havia visto porque seus braços estavam, até
aquele momento, cruzados. Devolvem-me a pergunta:
- E você, não?
- Não, eu não.
A partir de então, o papo se desenrolou
entre A e B, estando C – no caso, eu mesmo – voluntariamente excluído. O
simpático anfitrião ainda me comentou sobre a chuva, perguntou se morávamos
perto. O meu constrangimento não tinha volta, a cerveja desceu quadrada, apesar
de ter sido servida uma Skol (“desce redondo” uma ova!). Falou-se, nos breves
minutos em que ainda permaneci no salão, esperando que meu filho tomasse o
guaraná e devorasse uma coxinha de galinha, sobre os “arruaceiros” acampados
perto da Polícia Federal em Curitiba, onde permanece preso o Lula, e que
infelizmente nada podia ser feito para tirá-los dali. Pronto, eis o “isso aí”
que precisam “dar um jeito”. Agradeci a hospitalidade e desejei a ambos “homens
de bem”, boa sorte – sarcasmo, senhores, sarcasmo.
Já em casa, fiquei pensando sobre o meu
constrangimento naquela situação, afinal, não deveria estar constrangido por
não votar na extrema-direita, muito antes pelo contrário. O constrangimento
deveria partir, isso sim, de quem vestia a camisa – literal e simbolicamente –
do representante de ideias e ideais que vão de encontro a tudo o que a recente
história da humanidade nos deveria ter ensinado. Então, entendi a inversão de
sentimentos.
A expressão corporal e facial do homem
sentado ao meu lado na festinha de criança, seu discurso carregado de uma
entonação intimidadora e violenta, o olhar desafiador e ameaçador que diz “você
vai ver o que vai acontecer quando nós chegarmos ao poder” deixam claro que,
legitimado por um representante político que se utiliza do espaço público para
destilar ódio e intolerância, não há mais constrangimento em se assumir como
representante de um exército que vai salvar o país do caos moral. Doa a quem
doer, fisicamente.
Esse pessoal está, para usar uma expressão
da moda, “empoderado”. Permaneciam, até pouco tempo atrás, relegados aos
subterrâneos putrefatos das redes sociais, dos grupos fechados de WhatsApp e
Facebook. Desavergonhados, abandonaram o mundo virtual, constrangem quem ousa
contra-argumentar, quem os questiona, quem lhes pergunta curiosamente sobre o
programa de governo de seu candidato, tomados por uma raiva quase incontida e
pronta para explodir com um hipotético resultado favorável das urnas, aí sim
raiva incontrolável. Partem para o confronto físico, batem, machucam, como
milícias paramilitares. Imaginem, por curiosidade mórbida, essa galera
autorizada pelo chefe do Poder Executivo a agir em nome de Deus, da Família e
da Pátria. Brasil Über Alles, dizem eles por aí.
Pela primeira vez, neste processo
eleitoral, senti medo. Medo por ver, tão de perto, aquilo em que se transformou
parte significativa da sociedade brasileira. Vingativa, sedenta de sangue,
ignorante, embrutecida, sádica, intolerante, odienta. Há muito não me sentia tão
inseguro, desprotegido, ameaçado de perder minhas liberdades individuais, de
ver a Constituição Federal rasgada. Atavicamente, fui teletransportado para a
Ucrânia nos finais do século XIX e me vi correndo dos cossacos ávidos por mais
um pogrom, por mais um massacre contra os judeus. Ontem, judeus. Hoje, negros, gays,
mulheres, nordestinos, petistas, seres pensantes de maneira geral. Ah, e judeus
também, por que não?
Só mesmo chamando o Chapolin Colorado.
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