O mal perfumado


Naquele domingo, dia do primeiro turno das eleições, fazia frio e garoava intermitentemente em Curitiba. No final da manhã, recebi a mensagem da mãe de um dos colegas de sala do meu filho convidando-o para uma tarde de brincadeiras, uma retribuição pelo meu convite de véspera que não pôde ser aceito por compromissos familiares. No meio da tarde, seguimos para o endereço indicado, num bairro nobre da cidade, muito bonito, cheio de casas e verde, muito verde. Somos recebidos por um parente, os pais haviam saído para votar. Volto para casa, abro uma cerveja gelada e coloco música, um show completo do Genesis, já com o Phil Collins nos vocais, e depois emendo com Dire Straits e o inconfundível som da guitarra do Mark Knopfler. A chuva aperta, o dia vira noite e bate uma melancolia estranha, uma tristeza e uma angústia, um pressentimento de que algo muito ruim está para se abater sobre nossas cabeças. Mando mensagem pro meu pai, digo que estou com medo, que nunca poderia imaginar viver aquilo que ele e sua geração viveram, que aquelas estórias de “alunos” infiltrados em pleno campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, quando meu velho cursava Engenharia Química (queria mesmo era ser Historiador) pudesse se repetir agora. Que a democracia “tinha ido pro caralho”. Choro, bastante.

Por volta de sete da noite, retorno para pegar o pequeno carioca. Sou recebido pela mãe do colega, uma mulher simpática que me convida para sentar num dos sofás da sala. Ela informa que vai chamar o pai do colega para me cumprimentar, seguindo o protocolo da boa educação, para “fazer sala” como se diz popularmente. O pai do colega chega, estava acompanhando a apuração dos votos, eu não tinha ideia de como a tragédia estava se desenhando. Demonstrando uma euforia contida, informa que o candidato da extrema-direita somava, àquela altura, quarenta e tantos por cento dos votos e que mais um pouco a eleição presidencial estaria resolvida logo no primeiro turno. E que isso seria muito bom porque economizaria tempo e dinheiro, um segundo turno apenas “cumpriria tabela”. E que tudo isso que estava acontecendo era culpa do PT, que o voto no candidato da extrema-direita era o anti-petismo em ação e que era “bem feito”. Perguntam se eu quero tomar alguma coisa, e eu desesperadamente tentando chamar um táxi e a porcaria do telefone celular “dando pau”, e sou obrigado a continuar o papo sobre como Curitiba é bonita e agradável, e como o trânsito flui e como o tempo que se gasta numa viagem aérea pro Rio de Janeiro equivale ao tempo que se perde entre a Barra da Tijuca e o centro da cidade, e que estava frio e que a chuva não dava trégua.

Em momento algum da conversa os pais do colega do meu filho perguntaram em quem eu votei. Na verdade, eu me havia antecipado e dito que não havia votado porque não havia transferido meu domicílio eleitoral para Curitiba e que estava pensando em ir ao Rio de Janeiro caso houvesse segundo turno. Estava implícito, na cabeça deles, que, houvesse votado, teria escolhido o mesmo candidato. Solidariedade de classe? Faz-me rir.

Finalmente, o táxi chega. Seguimos para casa. Banho tomado e barriga forrada com o resto da pizza do dia anterior, que é, sem dúvida, a melhor pizza de todas, a pizza que fica curtindo o sabor na geladeira. Ouço fogos. A apuração do primeiro turno havia terminado. Imagino que os fogos sejam pela acachapante votação conseguida pelo candidato da extrema-direita.

Espantado, talvez ingenuamente, com a unanimidade conservadora e autoritária de TODOS os pais de colegas de escola com quem mantemos contato, não por escolha nossa, obviamente, mas pelo bem-estar de nosso filho, que precisa estabelecer vínculos de amizade, e incrédulo com comentários agressivos de crianças de nove, dez anos do tipo “Haddad é o caralho, eu voto Bolsonaro”, marcamos um bate-papo com os responsáveis pela orientação pedagógica da escola. Nossa intenção era saber como a escola está lidando com o clima de Fla-Flu em que se transformaram as eleições e eventuais episódios de violência, verbal e física, que possa acontecer entre alunos, de tenra idade ou já às portas da universidade. Não exigimos tratamento diferenciado ao nosso ponto de vista, por mais que acredite estar do lado certo da História, mas os cuidados necessários para que o nosso ponto de vista, que esperamos estar espelhado na cabecinha de nosso filho, seja resguardado, protegido.

A conversa fluiu bem e, para ser bem sincero, o que me chamou mais a atenção foi a informação de que nós éramos os primeiros pais a demonstrar interesse e, mais do que isso, preocupação com os rumos do país e do papel da escola como agente formador de cidadãos responsáveis, conscientes. Escola não “serve” só para ensinar matemática e português, diferentemente de que andam pregando por aí, tem obrigação de transmitir uma visão de mundo que contemple princípios democráticos e inclusivos. Então “caiu a ficha”. Nós somos o peixe fora d’água. Aparentemente, os pais dos colegas do meu filho se contentam com bons resultados no vestibular e estão confortáveis com os níveis de intolerância e apologia à violência crescentes, normalizando, legitimando e concordando com a barbárie apregoada pela direita, extrema-direita ou o nome que se queira dar aos representantes da decadência moral e  abismo civilizacional em que a sociedade brasileira está prestes a se jogar.

Sentado no sofá, esperando o táxi que nos levaria de volta para casa, eu e meu filho, percebi que nem todo eleitor do candidato da extrema-direita é truculento nos modos, no jeito de falar, no jeito de olhar, no jeito de se comportar. São gente como a gente. Por fazerem mais barulho, os brutamontes se destacam no meio da multidão. São a linha de frente do projeto autoritário que se avizinha, fazem o papel de peão na proteção do rei, fazem o trabalho sujo que limpa o caminho para a atuação da eminência parda.

Para que os cidadãos de bem tomem seu espumante no final da tarde de domingo, enquanto os filhos brincam no quintal dos fundos da casa. Perfumados e assépticos.



Comentários

Unknown disse…
Tristeza, por favor vai embora....minha alma que chora....

Muito bom texto querido.