- Marcelo, você trabalha no Ministério da Cultura, não
é?
- Isso. Trabalho numa autarquia do MinC, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, que é o órgão responsável
pela elaboração e execução da política de preservação do Patrimônio Cultural
brasileiro através da proteção e promoção dos bens culturais do país.
- Ah, bacana. Mas o que é esse negócio de Patrimônio
Cultural?
- Nós entendemos que Patrimônio Cultural é o conjunto
de bens, de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. São as formas de
expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas,
artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
- Mas assim fica muito abstrato. Você poderia me dar
uns exemplos?
- Claro. É Patrimônio Cultural de natureza imaterial,
por exemplo, o modo artesanal de fazer queijo de minas, o ofício das baianas de
acarajé, o ofício dos mestres de capoeira e a literatura de cordel. A gente diz
que eles são de natureza imaterial porque devem ser constantemente atualizados,
reproduzidos, executados, precisam de corpos, instrumentos, indumentária e
outros recursos materiais para existirem. Por outro lado, o Patrimônio Cultural
de natureza material são os bens que, uma vez produzidos, ganham autonomia em relação
ao processo de produção. Por exemplo, monumentos, edifícios e mesmo cidades
inteiras podem ser alvo de tombamento, que é o nome técnico usado para designar
o processo de reconhecimento de bens culturais como patrimônio material. A
cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, é uma das primeiras cidades tombadas
pelo Iphan, em 1938, e a primeira cidade brasileira a receber o título de
Patrimônio Mundial, conferido pela Unesco, em 1981.
- E vocês gastam dinheiro com isso? Eu acho um absurdo
desperdiçar verba pública para garantir a existência de manifestações culturais
que interessam a tão pouca gente. E tem mais, Marcelo. Se essas manifestações
fossem realmente populares, elas conseguiriam financiamento junto à iniciativa privada.
Eu não gosto de acarajé, eu não gosto de ler – muito menos, literatura de
cordel – e prefiro investir meu suado dinheirinho em viagens à Europa e à Nova
Iorque e comer queijo Brie. Além disso, para que serve a literatura de cordel
ou o que me importa se o queijo minas é feito deste modo ou do outro e por que
diachos o poder público deve desperdiçar seus cada vez mais escassos recursos
premiando quem mantém essa tradição? Ué, se quer fazer o queijo minas, faz e
pronto. Repito: se essas manifestações fossem dignas de respeito e admiração da
população como um todo, afinal, vivemos numa democracia e na democracia deve
prevalecer a vontade da maioria, elas sobreviveriam sem mamar nas tetas do
Estado.
- Olha, como diria Jack, o Estripador, vamos por
partes. Se você tiver curiosidade, dá uma lida na Constituição Federal, lá no
artigo 215, onde está escrito que o Estado brasileiro garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais e
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Também
diz que a lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura que deve conduzir à defesa
e valorização do patrimônio cultural brasileiro; à produção, promoção e difusão
de bens culturais; à democratização do acesso aos bens de cultura e à valorização
da diversidade étnica e regional.
- Essa onda do politicamente correto é um porre,
mesmo. Maldita hora em que resolveram colocar aquele cantor baiano, o Gilberto
Gil, no comando do Ministério da Cultura. O cara vem com aquele papinho de “do-in
antropológico”, de cidadania cultural, dando voz a grupos historicamente
marginalizados, desrespeitados em sua visão de mundo, em seu jeito de ser e
viver, de sua identidade, questiona os mecanismos de renúncia fiscal – dinheiro
público, meu, seu, nosso - da Lei Rouanet que beneficia basicamente os “campeões
de audiência” e relega a último plano a obrigação constitucional de
democratizar o acesso aos bens de cultura. É simples, Marcelo. Veja só. O valor
da cultura, das manifestações culturais e de seus portadores devem ser medidas
por sua popularidade e capacidade de se vender, de gerar grana, de fazer girar
a economia, não adianta tapar o sol com a peneira, as mãos invisíveis do
mercado se encarregam do resto. Se o povo quer Axé, dê Axé. Os repentistas que
se esforcem para atrair o público, contratem uma consultoria de marketing, ora
bolas.
- É um equívoco grotesco e perverso, rapaz, qualificar
ou desqualificar manifestações, práticas, expressões culturais a partir de
critérios monetários, mercantilistas, objetivos. O valor da cultura, ainda que
passe pela economia, deve ser compreendido eminentemente por sua dimensão simbólica,
por sua capacidade subjetiva de mobilizar as pessoas em torno de uma memória coletiva,
de uma identidade compartilhada, de um sentimento de pertencimento, de um
espírito de solidariedade, de um sentimento de continuidade entre o passado, o
presente e o futuro, de uma visão de mundo comum. No fundo, a cultura não serve
para nada além do bem-estar de estar no mundo e partilhar tal vivência com outros
seres humanos. É a “utilidade do inútil” de que nos fala o filósofo italiano
Nuccio Ordine.
- Continuo achando que o governo deveria pegar essa
grana e investe em saúde, que é coisa muito mais importante. Além disso, não
concordo que gastem o dinheiro dos meus impostos com músicas de gosto duvidoso,
com essa galera que acha que descende de escravos, com peças de teatro cujo
enredo eu não compreendo, com exposições de artes plásticas que não fazem o
menor sentido - um monte de rabiscos -, espetáculos de dança que mais parece um
bando de malucos correndo de um lado para o outro.
- Vou retomar uma afirmação tua no início deste
malfadado diálogo. Um regime político democrático não é aquele em que a minoria
se submete aos desígnios da maioria. Numa democracia verdadeira, o Estado deve
garantir o direito das minorias a despeito da maioria, lembrando sempre que os
conceitos de “maioria” e “minoria” são políticos, não se reduzem ao critério
quantitativo. Fazendo uma ponte com a comparação entre cultura e saúde, essa
mais importante que aquela, em sua opinião, eu poderia dizer que é um absurdo o
Estado gastar dinheiro em pesquisas científicas na busca da cura de uma doença
rara que afeta alguns poucos milhares de pessoas num universo de centenas de
milhões de habitantes ou gastar dinheiro com o tratamento de câncer de pulmão
nos hospitais públicos já que eu não fumo e pouco me importo se tem gente
masoquista que resolve colocar substâncias tóxicas pra dentro do corpo, o mesmo
valendo para os alcoólatras já que eu não bebo, nem socialmente. Mas não, porque
todos têm direito à saúde e todos têm direito à cultura.
Esse diálogo fictício não é tão fictício assim. É
comum ouvirmos que cultura não é prioridade, que não se enche a barriga com
cultura, que esse papo de que cultura é alimento para a alma é filosofia barata.
Conjuga-se, num mesmo discurso, a arrogância elitista que se crê no direito de hierarquizar
o que presta e o que não presta e a intolerância com aquilo que é diferente
daquilo que se gosta. É sintomático de uma sociedade pouco afeita à democracia
que, às vésperas de mais uma eleição presidencial, o candidato que lidera as
pesquisas até o momento cogite acabar com o Ministério da Cultura, rebaixando-o
ao status de Secretaria do Ministério da Educação. Na prática, a mudança pode
até não ter consequências mais graves, afinal, o orçamento sequer chega perto,
ano após ano, ao que é recomendado pela UNESCO, mas o efeito simbólico negativo
é inegável, significando o desprestígio de uma área que se dedica à valorização
da diversidade, da convivência com o “outro”, da pluralidade de visões de
mundo, crença, valores, estéticas.
Pelo menos, se aquele ator for nomeado ministro/secretário,
a pauta LGBTI estará garantida. Ou não?
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