Vou de táxi


Após sete meses morando em Curitiba, já me vejo em condições de ciceronear parentes e amigos pelos pontos mais turísticos e também por outros mais escondidos e que me ajudam a fincar pé, construir referências de identidade e de acolhimento na cidade em que decidi morar. Mais realista que o rei, mais papista que o Papa, bato no peito e digo, orgulhoso, que já orientei um taxista no trajeto de casa até a loja de produtos pet, precisava comprar ração e areia para os nossos filhos felinos. O aplicativo de navegação – o popular GPS - não estava funcionando e, recém-ingressado na profissão, como milhares de outros involuntariamente excluídos do mercado de trabalho, pouco conhecedor das ruas e avenidas e das armadilhas do trânsito curitibano, o taxista estava mais perdido do que aquele cachorro que caiu do caminhão de mudança. Mas ainda não sou “minhoca da terra”.

Dia desses, voltando de mais um passeio com meus pais, de visita por essas bandas, mamãe pergunta em que bairro estávamos. Arrisquei a dizer “centro da cidade”, ao que o taxista me corrige polidamente, “acho que aqui é Rebouças”. Sim, ali era o bairro Rebouças, o “achismo” dele pura cortesia ao forasteiro recém-chegado. Mamãe, então, pergunta se aquele bairro era residencial. Então, o motorista nos brinda com uma aula particular de História, explicando que o bairro já foi mais residencial, que ao longo dos anos aquele pedaço da cidade havia sido tomado pelo comércio, mas não só, que a bandidagem, o tráfico de drogas e a prostituição resolveram se estabelecer por ali, assim como no centro da cidade, e que os últimos governos tinham projetos de “limpeza”, de reapropriação urbana dessas áreas degradadas através de empreendimentos imobiliários mistos, comerciais e residenciais.

A aula de História continua. Como sói acontecer com boa parte dos curitibanos com quem conversamos, há um sentimento de nostalgia de um tempo que parece não voltar mais, em que a vida era mais tranquila, mais pacata, sem tanta violência. O Passeio Público, por exemplo, frequentado em tempos imemoriais por famílias inteiras, hoje é um antro de vagabundos e maconheiros. A qualquer hora do dia, e principalmente à noite, o risco de ser assaltado, esfaqueado ou baleado, é iminente. Até em bairros “bons”, onde nosso guia disse morar, urubu voa de costas. Em frente à escola de sua filha, até tiroteio já aconteceu.

Foram longuíssimos minutos ouvindo as lamúrias do taxista, uma realidade que, até o momento, não consegui enxergar. Estive no Passeio Público com meu filho e, por sorte, ao que tudo indica, saí ileso. Sorte de principiante. Para quem vem de uma cidade imersa, há muitos anos, no caos social, onde a cultura da violência está espraiada, impregnada no cotidiano dos cariocas, crianças e adultos, contaminando inclusive as relações pessoais, a forma de se expressar, o desrespeito às normas básicas de convivência, onde médicos de hospitais vão a Israel fazer cursos de especialização em medicina de guerra - afinal, as armas utilizadas por mocinhos e bandidos na outrora cidade maravilhosa são rotina em cenários de guerra – o relato se assemelhava ao chororô de uma criança mimada, mal acostumada com os pequenos contratempos que a vida nos impõe. Tudo é uma questão de perspectiva, cada um sabe onde o calo lhe aperta, para ele a violência em Curitiba é endêmica, para mim é uma vírgula num parágrafo extenso como esse aqui.

Então, resolvi brincar:

- Caramba, assim você me deixa preocupado. Vou voltar para o Rio de Janeiro!

Dali em diante, silêncio. O motorista, ao que tudo indica, ficou magoado com a brincadeira, desrespeitado em sua legítima preocupação com os rumos que sua cidade – embora não tenha nascido aqui, mas numa cidade paulista fronteiriça ao estado do Paraná – esteja tomando, culpa, em sua particular interpretação da realidade, dos muitos paulistas – como ele, inclusive, embora este fato tenha aparentemente passado despercebido – e nordestinos (sempre eles) que invadiram nos últimos tempos o próspero sul maravilha.

Arrisco dizer, e essa é a MINHA particular interpretação da realidade, que, se o papo descambasse para as eleições presidenciais do próximo domingo, e a partir do discurso modorrento e lamuriento do taxista e de vários outros exemplos de colegas seus que resolvem externar suas preferenciais políticos, aflorasse o onipresente discurso da extrema-direita de que “tem que mudar isso que está aí”, especialmente a preocupação com a segurança e a ideia de que “bandido bom é bandido morto” e a necessidade de resguardar, como já vi numa propaganda de candidato a deputado estadual, “o direito do cidadão de bem” – curioso de saber quem se enquadra nesta categoria.

Fenômeno estranho esse, a aderência em peso de uma categoria profissional ao candidato que, para além da vocalização e representação de instintos homicidas, propõe uma economia ultraliberal, cujo candidato a vice-presidente afirmou que esse negócio de 13º salário e adicional de férias são “jabuticabas brasileiras” – existe jabuticaba não-brasileira? - e “uma mochila nas costas de todo empresário brasileiro”. Pensando bem, tentando racionalizar essa escolha, talvez seja por isso mesmo, talvez essa adesão se explique porque houve, nos últimos anos, uma enxurrada de demissões nos setores privados da economia e os desempregados, boa quantidade deles qualificados, acharam na falácia do “empreendedorismo”, do “self-made man” a solução dos seus problemas. Garantias trabalhistas é coisa de quem não gosta de trabalhar, ironia das ironias, é um entrave ao desenvolvimento econômico, à produtividade, à meritocracia. 

Contanto que o GPS funcione...



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