A dor do crescimento


A passagem do ensino fundamental – o antigo primeiro grau - para o ensino médio – o antigo segundo grau – foi traumático. Já inclinado à área de humanas, sem traquejo para as fórmulas matemáticas, químicas, físicas e biológicas, vivi um dos episódios mais traumáticos de minha vida. Tive um professor de matemática que deveria ensinar trigonometria, algo que, até hoje, não tenho a mínima ideia do que seja, abstrato ao extremo, embora, acredito, tenha alguma serventia para o dia-a-dia. O cara não tinha a mais tênue ideia de como ensinar o gigantesco conhecimento depositado em suas entranhas, didática ausente, interessava-se apenas pelos alunos que “pegavam” a matéria sem maiores dificuldades, o resto que se explodisse. É claro que a turma também não ajudava, formada, eminentemente, de adolescentes mimados, filhos, parte deles, da elite econômica que acha que o professor deve abaixar a cabeça pro aluno porque os pais do aluno pagam seu salário, professor é mero empregado. Bom, eu e alguns outros gatos pingados éramos a exceção à regra, filhos de classe média carioca dos anos oitenta. Certo dia, o cara chega com um taco de beisebol que é colocado, estrategicamente, em cima da mesa. Brincadeira de mau gosto.

Então veio o trauma. Incapaz de assimilar as fórmulas trigonométricas, de compreender as relações entre seno, cosseno, tangente, raio, diâmetro, hipotenusa, catetos, preferia jogar para debaixo do tapete as minhas dificuldades, fingir que não existiam, que não haveria uma prova na semana seguinte, e que tudo se resolveria num passe de mágica. O resultado desse medo e angústia de encarar as dificuldades da vida – e para um adolescente de quinze, dezesseis anos que não tem maiores preocupações, as dificuldades da vida se resumem ao enfado das matérias escolares – foi um rotundo ZERO na avaliação mensal. Frustrado, com ódio daquele professor, tive a petulância de escrever, no espaço destinado às respostas dos problemas trigonométricos, que ele não havia ensinado aquela matéria, tudo isso em letras garrafais. Incapaz de realizar autocrítica, a despeito da péssima didática do pretenso Pitágoras, fiquei em prova final, a primeira chance antes de passar as férias de verão estudando “em recuperação” enquanto os colegas estivessem curtindo a praia ou o clube. Fiquei em prova final em matemática no primeiro e no segundo anos do ensino médio. E em química, física e biologia. E entendi que, sem meter a fuça nos livros, a faculdade seria um sonho inalcançável.

Meu filho sempre foi excelente aluno. Como qualquer criança de nove, dez anos, prefere jogar bola, ver televisão e brincar no celular do que sentar o bumbum na cadeira e estudar para a prova da semana que vem. Na antiga escola, “brigava” pelo lugar mais alto do pódio das notas, e ficava chateado quando um colega se saía melhor. Justiça seja feita, a cobrança não era lá aquela Brastemp, o que facilitava o destaque. Na escola atual, o nível de cobrança é infinitamente maior e a quantidade de matéria a ser estudada e compreendida – e decorada, claro -, às vezes, me deixa de cabelo em pé porque, afinal, são crianças e crianças “servem”para brincar e curtir a vida, com algum espaço para o estudo formal...

E meu filho experimentou, mais cedo do que eu, o seu “professor de matemática”que, na verdade, foi a “professora de português”. A prova do quarto bimestre estava ali na esquina, à espreita, nada que o afligisse porque as médias bimestrais anteriores foram boas e já lhe haviam encaminhado para o quinto ano do ensino fundamental. Já consciente de sua responsabilidade como aluno, eu e a mãe não lhe “enchemos a paciência” a estudar a matéria correspondente, limitando-nos a perguntar se havia estudado e se estava preparado para a prova. Ir mal numa prova é normal e compreensível, contanto que tenha se preparado. Sim, disse ele, estava preparado. O resultado foi desastroso porque, como admitido posteriormente entre soluços, não havia estudado coisíssima nenhuma, acreditando, quem sabe, na incorporação da onipotência dos seus super-heróis favoritos. “No pain, no gain” (“sem dor, sem ganho”), diz a expressão de uma conhecida marca esportiva.

A professora de português não tem responsabilidade alguma pelo mau desempenho do meu filho, assim como o professor de matemática não teve responsabilidade alguma pelo meu fracasso em entender as maravilhas da trigonometria. Meu filho não tomou esporro, não ficou de castigo, não teve de aturar cara feia do pai – ele imita muito bem a cara feia do pai -, mas ouviu pacientemente as razões pelas quais tirou uma nota abaixo da crítica. E ele sabia a matéria, foi desleixado!

Sendo bem sincero, minha vontade era fazer a prova por ele, protegendo-o da frustração, do sofrimento, da angústia com as dificuldades da vida. Acho que qualquer pai pensaria em fazer a mesma coisa. Se o fizesse, o estrago para sua saúde mental seria grande, porque o amadurecimento emocional – muito mais importante do que os centímetros ganhos horizontal e verticalmente – se nutre destes pequenos desafios que somos obrigados a enfrentar assim que levantamos da cama para mais um dia de trabalho, ou de estudo. Agüentar uma nota baixa, uma entrevista de emprego mal sucedida, a perda de um campeonato de futebol, um braço quebrado – e olha que ele já se estropiou várias vezes em sua curta existência - a eventual morte de seu filho felino – sim, ele tem um filho felino a quem devota carinho e amor -,uma paixão humana não correspondida, a perda de um parente, os pagamentos das contas da casa, o bombeiro para consertar um cano furado, o hambúrguer que vem com rodela de tomate.

Amanhã tem prova de Ciências. Minhas unhas foram pro espaço.




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