A flecha envenenada e a arrogância etnocêntrica


Quando adolescente, estive em Israel num programa de intercâmbio cultural. Em Jerusalém, uma das principais atrações turísticas, ao lado do Muro das Lamentações, era o bairro de Mea Shearim, um dos mais antigos da cidade e habitado por judeus ultraortodoxos desde sua fundação, na segunda metade do século XIX. Suas ruas, sua arquitetura, a vestimenta de seus moradores, enfim, seu modo de vida, lembram os vilarejos judaicos do leste europeu pré-iluminista. Talvez seu caráter “pitoresco”, turístico, para os turistas, obviamente, se deva exatamente por ser uma contraposição anacrônica, tradicional, ao caráter moderno de cidades como Tel Aviv. Exemplo da diversidade, da plasticidade da identidade judaica, laicidade e religiosidade. Uma espécie de museu a céu aberto, como a Colônia Williamsburg nos Estados Unidos, que reproduz uma cidade colonial na época da revolução americana.

Nós, um bando de adolescentes imberbes, transpusemos os arcos na entrada do bairro falando alto, rindo, misturados – meninos e meninas – sem sermos advertidos pelo guia de que aquele comportamento poderia causar desconforto nos moradores do gueto voluntário. Na verdade, e sendo bem sincero, ignoramos pretensiosamente, especialmente as meninas, o aviso pregado na entrada – escrito em hebraico e em inglês -, que solicita a todas as visitantes que portem vestimentas “modestas”, ou seja, blusas fechadas com mangas compridas e saias longas – nada de calças. Os meninos, por sua vez, devem evitar bermudas e camisetas sem manga.

Achamos graça quando uma senhora, ao “dar de cara” conosco, deu um grito de espanto, entrou em casa, bateu a porta e fechou as janelas. Menos graça achamos quando vimos pedras voando de um lado a outro, uma reação dos nativos contra os forasteiros desrespeitosos, profanadores da sacralidade daquele espaço cuja visão de mundo é reproduzida, física e simbolicamente, há séculos. Tivemos que sair às pressas dali, antes que uma daquelas pedras perdidas – versão medieval das nossas balas perdidas - atingisse alguém do grupo e estragasse o passeio.

Lembrei-me desta estória ao ler sobre a morte do norte-americano John Allen Chau, de 27 anos. Ele queria chegar de caiaque a uma ilha remota no Mar de Andaman, na Índia, habitada por uma tribo cujos membros atacam pessoas simplesmente por pisarem em suas praias. O próprio governo indiano proíbe qualquer interação com os moradores desta ilha, chamada Sentinela do Norte. Aparentemente, pescadores locais tentaram dissuadi-lo do empreendimento arriscado, sem sucesso, tanto assim que seguiu com seu caiaque “no qual carregava também uma bíblia”, de acordo com reportagem do jornal Estado de São Paulo. Segundo o chefe de polícia, Chau tentaria converter os nativos ao cristianismo, teoria comprovada por uma carta entregue aos pescadores na qual, segundo as autoridades policiais, o missionário teria escrito que “Jesus havia lhe dado força para ir aos lugares mais restritos da Terra”. Uma flecha envenenada tirou-lhe a vida.
Em sociedades culturalmente complexas, marcadas pela polissemia das narrativas de identidade, de discursos mais do que distintos, muitas vezes opostos e contraditórios, em que todo mundo se sente no direito de se sentir ofendido pelo desafio às verdades que seu(s) grupo(s) carrega – vemos esse fenômeno, sobretudo, quando o assunto é religião, espaço do sagrado, do intocável -, o espaço público deve ser preservado do avanço de tentativas de censura à liberdade de expressão, ainda que aquilo dito nos incomode e seja agressivo às nossas convicções. O espaço público, a “rua” tem de ser, sempre, a ágora moderna.
Coisa distinta foi o nosso comportamento, percebo agora - no bairro dos judeus ultraortodoxos, assim como o do missionário norte-americano. Ultrapassamos os limites da “casa”, do espaço privado, cuja profanação só pode acontecer com o beneplácito de seus moradores. As pedras de Mea Shearim e as flechas envenenadas da tribo da Ilha Sentinela do Sul foram uma resposta legítima à invasão desrespeitosa do território sagrado por forasteiros arrogantes e etnocêntricos.  

Eu tive sorte. O senhor Chau, achando-se a versão pós-moderna de Padre Antônio Vieira, não.




https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,americano-e-morto-a-flechada-por-tribo-isolada-da-india,70002616052




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