A muralha


Eu nasci no Rio de Janeiro, mas tenho a certeza de que, se alma tivesse, ou melhor, se em alma cresse, sem sombra de dúvida seria portenha. Tenho uma paixão meio inexplicável por Buenos Aires, sinto-me em casa lá, suas ruas arborizadas, suas inúmeras avenidas coalhadas de tudo quanto é tipo de comércio, os cafés, os bares, os restaurantes, o sotaque inconfundível dos bonaerenses, as praças bem cuidadas espalhadas por tudo quanto é canto, as pizzarias – Guerrin, Las Cuartetas, El Cuartito, El Imperio de la Pizza, La Monumental, Kentucky – e suas pizzas inigualáveis – a de morrones (pimentões), a clássica fugazzeta (queijo e cebola) que devemos todos comer ajoelhados e agradecer aos deuses pizzaiolos pela genial ideia -, as milanesas insuperáveis, os vinhos de primeira qualidade, a comida regional que te leva às províncias do norte – ah, as empanadas tucumanas... - e do sul, os queijos, a paixão futeboleira dos torcedores dos clubes de bairro, misturando nas tribunas e nas arquibancadas três, quatro gerações numa manhã ensolarada de domingo – sim, eu vi com meus próprios olhos, no bairro da Paternal, cancha do Argentinos Juniors, berço do nascimento profissional de Maradona, que também empresta seu nome ao estádio. A bonomia e a simpatia dos motoristas de táxi, que conseguem te contar a estória de suas vidas em quinze minutos. O metrô intransitável nas horas de rush e os ônibus coloridos. O cheiro. Toda cidade tem um cheiro, e o de Buenos Aires é uma delícia. Ela te convida a andar, andar, andar até fazer bolha na sola dos pés. Caballito, Villa Crespo, Palermo, Belgrano, Nuñez, San Telmo, Recoleta, Colegiales, Constitución, Centro. Flaneur.

Depois de alguns poucos dias desintoxicando os neurônios do depressivo cotidiano bananeiro, sigo para o aeroporto encravado na cidade, popularmente conhecido como Aeroparque, equivalente ao carioca Santos Dumont. Antes de deixar o aconchegante estúdio que havia alugado, vejo no noticiário que os funcionários das Aerolíneas Argentinas resolveram realizar assembléias até as dez horas da manhã – meu vôo de volta à Curitiba estava marcado para as 10:30, já era... – porque o governo havia descumprido um acordo salarial, ou algo parecido. Um caos total, centenas de passageiros se apertando no saguão de embarque sem qualquer informação, a ver navios. Lá pelas duas da tarde, exausto, consigo um apartamento para passar a noite, indicado pelo rapaz que me havia alugado o estúdio, solidário à minha orfandade – eis aqui a hospitalidade portenha... – e depois de ter conseguido, a duras penas, após uma meia dúzia de ligações angustiantes, a reprogramação do vôo de volta para o final do dia seguinte. Se há males que vem para bem, este, sem dúvida foi um, porque me deu a oportunidade de curtir um pouco mais a cidade que me faz feliz.

No dia seguinte, sigo para Ezeiza, o vôo reprogramado sairia do aeroporto internacional que fica a trinta quilômetros do centro da capital argentina. Depois de realizar os trâmites burocráticos de praxe, rumo para a área de embarque e, morto de fome, paro num lugar de massas e pizzas. Nada parecido ao que encontramos na cidade, mas vá lá, fome é fome e não estava ruim, não. Sento numa mesa compartilhada e arranho o meu espanhol, que dá para o gasto, com o garçom.
Sentada à minha frente, uma moça devora a sua pizza. A dela é de quatro pedaços, a minha é de oito. Ambos tomamos vinho. Talvez por me ouvir falar um espanhol “não autóctone”, ela puxa papo e pergunta para onde vou. Digo que volto para casa, no Brasil. Ela seguia para casa também, em Santiago do Chile, depois de trabalhar uns dias em Montevidéu. Jogamos papo fora durante um tempo. Eu lhe conto que estivemos em Santiago há dois anos e que eu me encantei com a cidade, em alguns aspectos, parecida com Buenos Aires. Ela me pergunta se fomos a alguma vinícola, “sim, é claro”, respondo. Parece que os locais também fazem essas visitas, e eu me senti menos turista. Lembro que o Chile, além dos ótimos vinhos, também é conhecido por sua literatura e sua música.

- Sim, Isabel Allende, Pablo Neruda..., responde ela, com uma voz de quem diz “claro, todo mundo está careca de saber que Neruda e Isabel são chilenos”.

Mas sobre a música, nenhum exemplo. Então, eu dou meu pitaco.

- Sim, e da música chilena não podemos esquecer-nos do Quilapayun!

- Quem? Como se escreve? Com dois “l”? É música folclórica? Porque eu não ouço música folclórica.

- Mas que vergonha! Como você não conhece o Quilapayun?

- É novo?

- Não, surgiu na década de sessenta e, na época da ditadura do Pinochet, eles gravaram músicas de protesto lindíssimas. Não sei se você gosta do Pinochet, porque a sociedade chilena ainda hoje está dividida no tema, mas...

- Não, não, não, não gosto do Pinochet. Mas eu não era nascida nessa época, por isso não os conheço.

- Ah, mas eu também não era nascido em 1970 e sei que o Brasil foi tricampeão mundial de futebol no México, com Pelé, Gerson e Jairzinho.

Ela dá uma risada, busca no Google e afirma, triunfante:

- Ah, é música folclórica! Meu pai, com certeza, conhece. Vou perguntar para ele.

- Olha, sempre que eu ouço duas canções especificas, me emociono. Uma se chama “Que dirá el Santo Padre”, sobre o silêncio da Igreja Católica enquanto os militares cometiam atrocidades no Chile. A outra se chama “A muralha”. Essa, especificamente, me deixa com os olhos cheios d’água.

Ela acessa o Youtube e descobre uma versão ao vivo de “A muralha”. Põe para tocar, eu a reconheço e digo que é essa mesmo, com o polegar para cima, enquanto coloco um pedaço de pizza na boca. Ela me dá uma sacaneada e diz que vai parar a música porque não quer que eu chore na mesa do restaurante, que vai ouvir com o headphone enquanto espera o embarque para retornar à bela Santiago. Talvez eu me emocione com “A muralha”porque a letra não poderia ser mais atual, e diz assim:

Para fazer esta muralha tragam-me todas as mãos os negros, suas mãos negras os brancos, suas brancas mãos.
Uma muralha que vá desde a praia até o monte desde o monte até a praia, lá sobre o horizonte.
-Tun, tun!
-Quem é?
-Uma rosa e um cravo...
-Abra a muralha!
-Tun, tun!
-Quem é?
-O sabre do coronel...
-Feche a muralha!
-Tun, tun!
-Quem é?
-A pomba e o louro...
-Abra a muralha!
-Tun, tun!
-Quem é?
-A minhoca e a centopéia.
-Feche a muralha!
Ao coração do amigo: abra a muralha.
Ao veneno e ao punhal: feche a muralha.
A murta e a hortelã: abra a muralha.
Ao dente da serpente: feche a muralha.
Ao rouxinol na flor: abra a muralha.
Levantamos uma muralha juntando todas as mãos. Os negros, suas mãos negras; os brancos, suas brancas mãos.
Uma muralha que vai desde a praia até o monte desde o monte até a praia, lá sobre o horizonte.

A chilena terminou sua pizza. Ela se despede:

- Tchau, foi um prazer. Eu me chamo Natália.

- Tchau, eu me chamo Marcelo.

- Boa sorte, Marcelo.

- Para você também, Natália.

E viva a música chilena.



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