A alma brasileira: notas futebolísticas


Em recente entrevista ao canal de esportes ESPN, o jogador do Palmeiras Felipe Melo relembrou o “pisão” dado no excelente jogador holandês Robben durante o jogo válido pelas quartas-de-final da Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul. Por conta da agressão, foi expulso da partida, mas não se arrepende do gesto covarde, muito pelo contrário. Melo afirmou que “se jogasse amanhã, ia pisar nele (Robben) de novo” porque, afinal de contas, “estava representando uma nação”. De nada adiantou o destempero do volante, o Brasil perdeu o jogo por dois a um e voltou para casa mais cedo.

Na última Copa do Mundo, realizada na Rússia, Neymar virou motivo de chacota por suas incontáveis simulações de falta, rolando no gramado de um lado para o outro tal qual uma foca amestrada. Jornalistas esportivos e torcedores, brasileiros e estrangeiros, criticaram-no duramente por seu comportamento antiesportivo, ludibriando a arbitragem em favor da seleção brasileira. Apesar do papelão diante das câmeras de televisão e das teleobjetivas dos jornais, cada vez mais onipresentes nos estádios de futebol, que o diga o polêmico instrumento do Árbitro Assistente de Vídeo (na sigla em inglês, VAR), Neymar não esteve sozinho em sua cruzada em nome da Lei de Gérson. Rivaldo, campeão mundial de 2002, publicou, à época do “cai-cai”, que Neymar não deveria se preocupar com os comentários “dos outros países” – países comentam? – porque muitos deles “já estão em casa”. E seguiu na defesa de seu cliente: 

“Se tiver que driblar, drible. Se tiver que dar chapéu, dê. Se tiver que fazer gol, faça. Se tiver que cair com as faltas, caia. E se tiver que ganhar tempo no chão, ganhe. Porque todos fazem o mesmo. O problema é que você é o cara da Copa e ídolo do nosso país e, infelizmente, isso está incomodando muita gente, eu não sei porque”

Tanto Felipe Melo quanto Rivaldo reproduzem o discurso ufanista da pátria de chuteiras, um arrogando-se o papel de “representante da nação” em terras estrangeiras, outro outorgando a um ótimo jogador de futebol o título de “ídolo do nosso país” e, por consequência inevitável, legitimado a defende-la seja como for, utilizando-se, para tanto, das armas necessárias seguindo a ideia de que os fins justificam os meios. Ambos incorporam a narrativa do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A questão de fundo, e que nossos bravos gladiadores ludopédicos possivelmente não saberiam desenvolver com mais profundidade do que uma piscina infantil, é de que nação estamos falando.

A nação proposta por ambos, refletida nos gramados, é a da apologia à malandragem, como se fosse um atributo moral positivo, uma forma de driblar as adversidades da vida porque o sol não nasce para todos. É a do levar vantagem em tudo, seja como for, doa a quem doer, literalmente inclusive. É o velho “jeitinho brasileiro”, o Bombril na ponta da antena da televisão. Apregoam uma nação violenta onde o adversário não é adversário, é inimigo e deve ser abatido. É a do dono do quiosque da praia que aluga guarda-sóis e cadeiras com preços distintos, mais “salgados” para os turistas otários. É a do motorista que estaciona o carro na vaga para deficientes físicos. É a do casal que “guarda lugar” na fila do supermercado. É a do policial que recebe propina para não multar carros estacionados irregularmente ou de ambulantes que ocupam indevidamente o espaço público. É a do médico que cobra valores diferentes para consultas “com recibo” e “sem recibo”. É a dos cidadãos de bem que ateiam fogo em moradores de rua. É a das ligações clandestinas de luz e telefone. É a da homofobia e do racismo cotidianos. É a da glorificação da tortura e dos torturadores. Da ditadura e dos ditadores.

Na semana passada, na volta da escola, passamos no mercadinho. Chegando em casa, tirando as compras da sacola – pão francês, cem gramas de presunto, um copo de iogurte integral, duas caixinhas de Nescau para o café da manhã do meu filho e duas latinhas de cerveja – senti falta da empada de palmito, que é ótima. Voltei ao mercadinho e a atendente confirmou que eu havia deixado a empadinha, estava ali guardada. A questão é que eu, equivocadamente, pensei haver esquecido a empadinha DEPOIS de ter pago a conta, mas, na realidade, eu nem cheguei a passar o salgadinho pelo caixa. Para piorar, eu voltei lá sem dinheiro algum. Perguntei à atendente se poderia passar no dia seguinte, estava sem dinheiro, ela disse que não havia problema, só precisava anotar meu nome.

No dia seguinte, peguei meu filho na escola e tomamos o caminho do mercadinho. Ele estranhou a mudança de rota e perguntou para onde íamos. Eu expliquei que precisava pagar a empadinha que havia levado no dia anterior, sem pagar. Alguns segundos depois, pergunta-me o que aconteceria se eu não voltasse lá, e não pagasse nada. Eu lhe respondi que, possivelmente, não aconteceria nada em termos práticos, e o mercado teria um prejuízo de cerca de cinco reais. Expliquei-lhe, por outro lado, que não se tratava de questões práticas, mas de uma postura ética diante da vida, de ser honesto, de solidariedade ao próximo, de confiar no outro, assim como a atendente confiou em mim, a despeito do ethos entranhado na alma brasileira resumido na justificativa “porque todos fazem o mesmo” – todos trapaceiam, entenda-se bem. Meu filho entendeu o recado.

Dizem que o futebol é um microcosmo da sociedade brasileira. Prefiro o badminton.



Comentários

Mais uma boa Marcelo!! ��������