Exaustos depois de um dia de brincadeiras no parque
de diversões, voltávamos para casa quando passamos pela placa que indica o
limite entre os estados de Santa Catarina e Paraná. Olhei para a Renata, que
estava sentada no banco de trás com o Miguel dormindo em seu colo, o mais
exausto de nós três, e exclamei “pronto, estamos em casa novamente!”. Ela deu
uma risada. Chegamos em casa suados e fedidos depois de três horas de estrada e
oito horas de brincadeiras (e filas paras as brincadeiras...), cansados embora
felizes – eu e Renata ainda mais felizes pela felicidade do Miguel – sob chuva
intensa. Banhos tomados – o chulé era algo inacreditável -, sentamos os três no
sofá da sala, ligamos a televisão e ficamos ali “de bobeira” até a hora do
sono, que não demorou muito a vir. Eu ainda esquentei uns pedaços de pizza que
sobraram do dia anterior, da pizzaria da rua em que o pizzaiolo, quando me vê
lá de dentro da cozinha, manda um “e aí, Marcelo! Beleza?”.
O dia seguinte era dia de fazer o mercado porque a
despensa estava em petição de miséria. O taxista, depois de nos indicar o
melhor lugar para comprar azeite, diz que morava há pouco tempo em Curitiba,
ainda no estágio turístico, vinha da cidade paulista de Santos. Dizemos que
somos Rio de Janeiro e que também moramos aqui não faz muito. Ele diz que adora
o Rio de Janeiro, há anos não vai pra lá. A Renata diz que ele deve sentir a
falta da maresia. “Não. Eu gosto do frio. A minha mulher diz que até as músicas
que eu ouço lembram o frio”. Rimos todos. Renata ainda comentou que uma amiga
lhe havia mandado uma foto da praia de Ipanema, céu azul e água convidativa,
que saudade. Retruco, dizendo que a foto não vem acompanhada do prazeroso calor
de 45 graus à sombra. Prefiro o frio.
Depois de guardar as compras na despensa, saímos
para almoçar. Caminhando pelas ruas desertas do bairro em que moramos, sob um
sol inclemente, possivelmente acima dos 30 graus, o Miguel, coincidentemente,
lembra de um breve diálogo – ou seria triálogo? – que tivemos num outro táxi. O
taxista teria dito – digo “teria” porque não me lembro da conversa e tenho de
me fiar na palavra do guri – que o sol de Curitiba não era “como o sol do Rio
de Janeiro” e que eu teria respondido que preferia o frio. Os dois, mulher e
filho, resolvem se voltar contra mim e dizem que eu sou um carioca fajuto, que
carioca da gema gosta mesmo é de sol no modo queimadura de terceiro grau, que é
uma delícia sentir o suor escorrendo pelas costas aninhando-se lá embaixo,
vocês sabem onde. Digo, então, que ser carioca não é igual a ser uma árvore,
que depende de uma raiz para sobreviver. Que eu sou carioca, um carioca que
talvez seja diferente de outros cariocas, mas não sou somente um carioca, posso
ser outras coisas se eu bem entender. Curitibano, talvez? Fechando com chave de
ouro a conversa de bêbado a caminho do restaurante, Miguel diz que, sim, ele é
uma árvore porque “tem um tronco”.
Fico pensando nesta expressão “estar em casa”,
“sentir-se em casa”, “voltar pra casa”. Quando eu disse pra Renata, meio que de
propósito porque eu sei que ela sente mais saudades do Rio de Janeiro do que
eu, que havíamos chegado em casa quando cruzamos a fronteira entre Santa
Catarina e Paraná, o sentido era o de voltar para o lugar do conforto, do
afeto, do sentir-se à vontade, do sentir-se parte, do apropriar-se, do
pertencimento, do reconhecimento. Do olhar o mapa e se localizar e ficar feliz
com isso, coisas simples assim. Talvez eu seja um “curitiboca”, que é como o
pessoal daqui se refere aos cariocas que moram em Curitiba e já adquiriram
determinadas características – de linguagem, de comportamento, de valores – dos
nativos, embora esta categoria “nativos” seja bastante questionável porque a
quantidade de “forasteiros” é impressionante. Ser uma coisa sem abandonar a
outra.
Talvez este seja o ponto. Talvez necessitemos mais
do que nunca desconstruir categorias reducionistas como “nativos”e
“estrangeiros” porque, no final das contas, somos estrangeiros e nativos de
tudo. Eu sou um carioca que odeia o calor e adora a cervejinha no boteco da
praça – ah, a Praça São Salvador, que saudades... – e sou um curitibano que vai curtir o domingo nos
gramados do Museu Oscar Niemeyer e cumprimenta as mulheres com apenas UM
beijo no rosto porque é assim que curitibano faz e pede cem gramas de
“enroladinho de vina” porque salsicha em Curitiba se chama “vina”e não
salsicha. Somos metamorfoses ambulantes.
Sartre dizia que o antissemita escolhia a
impenetrabilidade da pedra, daí sua dificuldade em aceitar a diferença e sua
percepção de que a identidade é “algo” eterno, rígido, palpável, objetivo, com
fronteiras bem delimitadas e imutável. Como a árvore que depende de raízes para
sobreviver. Em resumo, uma vida chatérrima, monótona, tipo “papai e mamãe”.
O mundo seria bem mais interessante se, em vez da
insegurança, da insensibilidade e da intolerância de quem se comporta como
pedra e é obcecado por muros, fronteiras e “certificados sanitários” (sic) de
imigrantes – alguém aí já ouviu falar de eugenia? –incorporássemos o espírito
do judeu errante, condenado a vagar por aí, desterrado, um flaneur em estado
puro, não mais um estigma, e construíssemos nossas identidades como num
caleidoscópio. Identidades múltiplas, compatíveis, contextuais. Caleidoscópicas.
E, donos do mundo, cantarolássemos “O Portão” do
bom e velho Roberto Carlos:
Eu voltei agora pra ficar
Porque aqui, aqui é meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei
Eu voltei
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