Em junho deste ano, aconteceu uma pequena revolução
na monarquia medieval da Arábia Saudita. O príncipe benévolo, Mohamed Bin
Salman, filho e herdeiro do monarca, concedeu permissão para que as mulheres possam
dirigir automóveis. Obviamente, a concessão – e não um direito, como deixaram
claríssimo as autoridades locais – é um grão de areia no deserto saudita, visto
que o patriarcado continuar a exigir das mulheres o uso de roupas negras que
cubram a totalidade do corpo; permanece a proibição de interação com
desconhecidos; não podem trabalhar, abrir uma empresa ou mesmo ter uma conta
corrente no banco sem a permissão de um homem (pai, irmão, marido, filho); não
tem permissão de viajar ao exterior sem um “guardião”, figura que também deve
acompanhá-la ao médico; não podem solicitar a guarda dos filhos em caso de
divórcio; não podem freqüentar restaurantes que não disponham de “zona
familiar” e devem entrar no estabelecimento por uma porta lateral, diferente da
utilizada pelos homens. Finalmente, e como prova de que a mulher saudita vale a
metade do valor de um homem saudita, o testemunho de duas equivale ao
testemunho de um, daí imaginarmos o suplício daquelas que decidem denunciar
qualquer tipo de assédio.
Enquanto as mulheres sauditas comemoram uma
minúscula vitória diante da opressão avassaladora sobre seus corpos e mentes,
no Brasil há mulheres, e não devem ser poucas, que caminham voluntariamente ao
cadafalso da submissão ao macho. É o que depreendo das declarações feitas por
uma senhora eleita deputada estadual no Ceará, autora do malfadado projeto
“Escola Sem Partido”. De acordo com a digníssima representante da vontade
popular – daí a minha desconfiança de que muitas mulheres compartilham de suas
crenças e valores - seu marido é, depois de Deus, o seu mestre, o “dono” do seu
mandato.
“É a pessoa que
conduz, aconselha. Eu entendo e vivo a submissão feminina no amor em Cristo.
Vivo o casamento com aliança, nós não somos menos que o outro. Ele é a cabeça e
eu sou o corpo. Uma cabeça não anda só. Se o corpo anda sem cabeça, vai ter
sofrimento. Casamento é indissolúvel. (...) Pra mim, dizer que o Jaziel (marido
da deputada) me orienta e diz “não faça isso”, isso não me diminui em nada.
Entendo a submissão feminina como a coisa mais linda e formidável dentro do
casamento. A igreja é submissa a Jesus assim como a mulher é submissa ao
marido. O marido deve dar até a vida para a esposa. Eu me senti cuidada pelo
Jaziel. Entendo que o organismo feminino é mais frágil, sim, não estamos
preparadas para algumas atividades. Então eu vivo a felicidade de ser a mulher
que pensa assim. Eu aceito ser mulher e agradeço a dádiva de ele ter me
escolhido ser mulher e protegida por ele”
O relativismo cultural me orienta a compreender o
que leva uma sociedade, ou parte dela, a agir de determinada maneira. É assim
que devo, na medida do possível, colocar em parênteses meu julgamento de valor
de práticas que considero arcaicas e interpretá-las segundo a lógica dos
indivíduos que vêem nelas um sentido comum, um modelo de comportamento
condizente com suas crenças, sua visão de mundo. Tenho certeza de que muitas e
muitas mulheres compartilham das ideias da deputada cearense – se assim não
fosse, não seria eleita – bem como muitíssimas sauditas acreditam que seu lugar
na sociedade é definido pelos homens. Segundo a deputada, utilizando-se de uma
metáfora anatômica, o homem – cabeça - pensa e a mulher – corpo – obedece.
A questão é que muitas sauditas e muitas cearenses NÃO
CONCORDAM com esta interpretação das relações entre os gêneros, de
submissão e subjugação, e reivindicam liberdade para escolher os caminhos de
suas vidas, os papéis sociais que desejam interpretar, as “províncias de
significado”que tem vontade de freqüentar, se querem trabalhar ou não, se
querem ser mãe ou não, se querem ser donas de casa ou não, se querem casar com
homem, se querem casar com mulher, se não querem casar, se querem dirigir carro
ou não, se querem ser veganas ou cair dentro de uma picanha.
É neste momento que o relativismo cultural dá lugar
ao universalismo moral, porque se não há consenso entre TODOS sobre o
modo “correto” de se pensar e se comportar, é imperioso que prevaleça valores
universais que abarquem a totalidade dos membros do grupo. Diferentemente do que
pensa a deputada cearense, o fato de que “o povo gosta de Jesus” não significa
que “o povo que não gosta de Jesus”deva se submeter aos desígnios dos crentes,
muito pelo contrário. Numa sociedade democrática, o fundamental é resguardar o
direito e a liberdade das supostas “minorias”, promovendo a convivência entre
os diferentes, a diversidade, a pluralidade de ideias e concepções de mundo.
Liberdade de expressão. E isto, obviamente, num ambiente laico, onde Estado e
religião estejam separados.
Eu prefiro Rousseau, Montaigne e Montesquieu a
Jesus. Mas, como diz a sabedoria popular, gosto não se discute. Lamenta-se...
Comentários