Infância perdida


Não precisamos ser aquela cartomante marota que adivinha o futuro para descobrirmos o que as crianças querem fazer assim que recebem o boletim escolar do quarto bimestre e descobrem que, depois de um ano de aporrinhações desnecessárias, tipo a diferença entre “translação”e “rotação” da Terra ou regras ortográficas – afinal de contas, a palavra “exata” se escreve com “x” ou com “z” - e cálculos matemáticos que a o celular pode responder sem maiores dificuldades, passaram de ano e terão mais de dois meses de “dolce far niente”, de vagabundagem – no bom sentido do termo, claro – refesteladas no sofá da sala a assistir seus desenhos favoritos, comendo porcaria, acordando a hora que quiser, recebendo os amigos em casa e visitando-os quando convidados.

Com o meu filho, não é diferente. Este ano de 2018 foi, para ele, no mínimo, intenso. Mudou de cidade – um carioca da gema em terras curitibanas -, mudou de escola, teve de adaptar-se a ela e aos novos colegas, teve de reconstruir sua rotina, estabelecer novas relações de amizade e referências de identidade. Na escola, a cobrança foi muito maior do que no ano anterior, o que me deixava bastante apreensivo, inclusive eu o cobrei além do necessário, imaginando que um possível “desleixo” – no meu ponto de vista, obviamente – poderia levá-lo ao fundo poço, quer dizer, às provas finais e à recuperação. Mas nada disso aconteceu, o moleque se saiu muito bem, a quantidade insana de deveres de casa e pesquisas e matéria de “verificações escolares” – os antigos “testes”da minha época – e provas bimestrais não o amedrontaram. Passou direto e ganhou a liberdade condicional das férias de verão.

O pai, seguindo a “lógica Gelol” – “não basta ser pai, tem que participar” – calça as chuteiras da humildade e vai pro parque jogar bola com a moçada, arremessar atrás da linha dos três pontos, correr atrás da bicicleta nova quase de gente grande que o Papai Noel deixou na árvore de Natal, encher a garrafinha de água que vai matar a sede do skatista impressionado com a quantidade de gente na pista e que, depois da timidez inicial, esbalda-se por quase três horas ininterruptas. E, então, depois de um dia repleto de atividades, ambos sentam-se no bar em frente ao museu projetado por mestre Niemeyer, o pequeno grande homem pede seu sanduba favorito – hambúrguer de costela suína com cheddar, bem leve e saudável – e o acompanhante mata a sede com um chope artesanal estupidamente gelado. Dia um, missão cumprida.

Infelizmente, nem todos os pais acreditam na tese de que férias são sinônimo de descanso, diversão, pernas pro ar. Dia desses, Miguel quis convidar um colega da escola para brincar aqui em casa, mas o pai disse que o colega estava “fazendo os trabalhos diários de matemática e português”. Surpreendido, soltei um sonoro “caramba!” – bem, não foi bem essa a palavra, mas também serve... – que assustou até o gato que tirava aquela soneca de cinco horas do sofá da sala. Naquele momento, sinceramente, senti pena do colega do meu filho, obrigado a estudar para o ENEM praticamente uma década antes da prova.

Lembrei-me imediatamente de uma entrevista que o pediatra Daniel Becker, de quem sou fã incondicional, concedeu à revista Exame há pouco tempo. Ele diz, por exemplo, que vivemos uma época de valorização da aprendizagem com adultos em aulas, supervisões, atividades programadas e estruturadas quando, na realidade, esse tipo de atividade só provê a criança com um tipo de inteligência e é bastante limitante, uma espécie de “educação bancária” em que uma das partes domina o conhecimento e a outra parte está ali num papel passivo, para apenas receber.

“As nossas crianças brincam para serem adultas, por essa crença dos pais de que elas se tornarão mais prontas para o mercado. Brincando a criança aprende coisas que ninguém mais pode ensinar a ela. Uma criança que brinca no parque com amigos vai aprender a negociar, interagir, ter empatia, ouvir o outro, se fazer ouvir, avaliar riscos, resolver problemas, desenvolver coragem, autorregulação, auto estímulo, criatividade, imaginação… Uma série de habilidades que nenhuma aula vai oferecer para ela. E elas são muito mais importantes para um adulto bem-sucedido do que uma aula de Kumon ou violino. Não que precisemos desvalorizar a importância de matricular nossos filhos em algumas atividades, mas é importante nunca esquecer que brincando livremente na natureza a criança está aprendendo
Ou seja, não há problema em realizar tarefas de matemática e português, ou tomar aulas de violino – Miguel toca violino, ele gosta muito, nós gostamos também, mas está de férias, como tem que ser – ou aulas de inglês e natação, contanto que estas atividades não submetam e restrinjam a infância às obrigações e chateações do mundo adulto.
Já avisei o Leopoldo, um dos nosso três filhos felinos, o caçula, que semana que vem vamos repetir o convite pro colega estudioso. E que ele, o felino, fique de sobreaviso, porque o risco de um novo “caramba” está longe de ser descartado.
Quem me dera fosse eu criança de novo... Inveja.
Tentei recriar o hambúrguer de costela favorito do moleque. Até que ficou bom.





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