O roteiro era o mesmo. A metade da arquibancada do
antigo Maracanã destinada à torcida rubro-negra, sempre lotada nos clássicos.
As duas maiores “organizadas” do clube, a Raça Rubro-Negra e a Torcida Jovem do
Flamengo, entoando seus gritos de guerra e exibindo coreografias particulares.
Dizia-se que a melhor vista de estádio era de quem estava sentado na outra
metade, de frente para a multidão vermelho e preta, testemunhas oculares e
invejosas da beleza indescritível de um espetáculo visualmente impactante. Não
à toa, no “cara ou coroa”, o capitão do “mais querido” escolhia, quando lhe
cabia a primazia, “campo”, e não “bola”. Escolhia invariavelmente, no primeiro
tempo da partida, o campo de frente para a torcida adversária imaginando que,
se fosse preciso marcar gols no segundo tempo, de frente para a massa
rubro-negra, recebendo o apoio de dezenas de milhares de vozes, o objetivo
seria mais facilmente alcançado. Sabedores desta estratégia, os jogadores
adversários, quando ganhavam o “cara ou coroa”, utilizavam-se da estratégia
inversa, involuntariamente admitindo a força da torcida do Urubu e a fraqueza
de sua própria.
Às vezes, o Flamengo perdia. Quando isso acontecia,
logo depois de o rival fazer um gol, a torcida deles começava a gritar “ela,
ela, ela, silêncio na favela”. Os
flamenguistas também passaram a ser chamados de “mulambada” - não sei bem
quando esta “tradição” foi inventada -, termo de origem angolana que significa
“farrapo” e que a “torcida arco-íris” – aglomerado amorfo anti-flamengo – passou
a usar como mantra, sinônimo de gente suja e mal arrumada, maltrapilha,
gentalha, “farofeiros”, gente de baixo nível socioeconômico e cultural. Ser
chamado de favelado, na visão deles, era um xingamento, um estigma, um
palavrão. Aquilo me incomodava bastante, não por não querer-me associar à
favela, mas devido ao sentido pejorativo que o termo adquiriu. A acusação
estabelecia uma relação necessária entre o espaço físico, a condição social dos
habitantes e a cor da pele. Ser flamenguista era ser favelado, e ser favelado
era ser preto e pobre, e ser preto e pobre era ser mulambada, e ser mulambada
era ser marginal e ladrão, desviante. Preconceito de classe e preconceito de
raça. O irônico e, por que não, trágico é que muitos dos torcedores adversários
eram pretos e pobres e favelados, vizinhos de porta e amigos de “mulambentos” rubro-negros,
ambos acordando de madrugada para tomar o trem lotado até a Central do Brasil e
ser “esculachado” pelo patrão, muitas vezes o patrão sendo o “mulambo” branco e
rico da zona sul do Rio de Janeiro. Mas, enfim, o futebol tem dessas coisas...
O Flamengo é um time popular, de massa. Como o
Corinthians, em São Paulo. Não é mera coincidência que Flamengo e Corinthians sejam
as equipes brasileiras com maior número de torcedores. Times do povo, dos
favelados, dos pretos, dos pobres, e também da classe média remediada, dos
ricos da orla carioca e dos paulistanos quatrocentos. São times do tipo
“coração de mãe”, sempre cabe mais um. A Democracia Corintiana do Doutor
Sócrates.
Leio que a diretoria rubro-negra quer contratar o
jogador Felipe Melo, atualmente no Palmeiras e que iniciou sua carreira
profissional “pra valer” no Flamengo de início dos anos 2000. Sempre teve fama
de “marrento”, sempre arranjou confusão por onde passou, sempre achou que a
masculinidade se mede na quantidade de socos que se dá no jogador adversário –
inimigo, talvez? -, levar desaforo para casa é coisa de medíocres e fracos.
Paladino da nacionalidade brazuca, repetiu orgulhosamente que pisaria de novo
no jogador holandês Robben, esse sim um craque do velho esporte bretão, durante
partida eliminatória da Copa do Mundo de 2010 porque, afinal de contas, ora
bolas, estava representando seu país – soberba pouca é bobagem. Coroando a
mediocridade e brutalidade de sua visão de mundo, declarou publicamente seu
voto no candidato da extrema-direita, que pesou negros em arroba, durante
entrevista após um jogo do campeonato brasileiro, orgulhoso de sua torpeza
intelectual. Os brutos também amam, talvez.
Felipe Melo está longe de ser um arquétipo ariano
ou um viking nórdico, um Thor hollywoodiano. Seu fenótipo está mais para a
mulambada, seguindo o discurso estúpido da torcida arco-íris. Ele é o mulambo
que deu certo. É possível que a fama e o dinheiro lhe tenham “embranquecido”, é
possível que hoje seja olhado como um “negro de alma branca”. Como diz aquela
propaganda de cartão de crédito, “existem coisas
que o dinheiro não compra. Para todas as outras, existe Mastercard”. Como diriam alguns,
falta ao brutamontes passar da consciência em si à consciência para si.
Seu comportamento dentro e fora de
campo são um acinte à história rubro-negra, à torcida rubro-negra, sua apologia
à violência, seu alinhamento político ao que há de pior na sociedade, ao
racismo e ao apartheid social, à intolerância e ao obscurantismo cultural. É
cúmplice do que está por vir.
O hino do Flamengo me emociona. Diz que “uma vez
Flamengo, sempre Flamengo, Flamengo sempre eu hei de ser” e que “eu teria um
desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo” e que “Flamengo até morrer,
eu sou”. Entretanto, se, em nome do marketing e da racionalidade econômica, às
favas com princípios éticos e morais universais que nos civilizam desde o
Iluminismo, a diretoria de turno recontratar esse personagem nefasto, abro mão
de minha identidade rubro-negra enquanto o Mal prevalecer.
Nada é eterno.
Comentários