Apologia da mediocridade


Diálogo imaginário entre dois amigos, sentados numa mesa de bar a tomar uma cerveja gelada.

- Pois é, rapaz. A partir de amanhã, perco o meu emprego. O presidente eleito já anunciou que o Ministério da Cultura vai acabar. O quê que eu vou fazer da minha vida?

- Ué? Se fosse comigo, começaria a estudar de novo, tentar passar num outro concurso, sei lá, ou qualquer outra coisa.

- Mas você entende que não é tão simples assim, né? Estudar para um concurso leva tempo e a procura por “qualquer outra coisa” na minha área de atuação, no atual cenário de desemprego, pode ser desesperadamente longa. Não vou conseguir realocação no mercado de trabalho num passe de mágica, não é um simples “querer é poder”, estória para boi dormir.

- Tudo bem. Mas, nesse meio tempo, imagino que você tenha alguma reserva financeira para agüentar um período transitório de turbulência econômica.

- Não, não tenho reserva financeira.

- Olha, então vai dirigir Uber, cara. Se vira nos trinta, como dizem por aí.

- Essa sua sugestão fez-me lembrar dos russos logo após o fim da União Soviética, obrigados a “se virar nos trinta”, como você diz, pra sobreviver no eldorado do Tio Sam atrás do volante de um táxi, renomados cientistas e professores universitários relegados involuntariamente à insignificância intelectual, desprezados, descartados. E eu tenho tanto a contribuir com as políticas públicas de cultura do nosso país! Ao longo dos últimos muitos anos, capacitei-me profissionalmente e recuso-me a olhar para meus diplomas de mestrado e doutorado como mero enfeite na parede da sala. O Estado brasileiro investiu na minha formação como gestor público, e agora vem este mesmo Estado e diz que não precisa mais dos meus serviços.

- Mas para quê serve o Ministério da Cultura, afinal? Acho até que esse negócio de cultura é coisa de comunista e subversivo, de vagabundo que fica pensando, maconheiro, desocupado, filhinho de papai. Cabeça vazia é oficina do diabo, já dizia meu pai.

- Meu caro, a Cultura não “serve”para nada, porque a Cultura não segue a lógica utilitarista. A Cultura é, e ponto. Ela é o que nos torna humanos. São os óculos através dos quais experimentamos e interpretamos nossa existência, nossa visão de mundo, nossas crenças e valores incorporados em identidades, máscaras sociais, representações simbólicas, sentimento de pertencimento e auto-estima. Valorizar a Cultura significa valorizar a democracia, a diversidade, a pluralidade, a polissemia das narrativas, o respeito ao “outro”, a empatia, a solidariedade. A Cultura é o bastião de resistência ao arbítrio, à intolerância, à violência, ao genocídio.

- Representações simbólicas? Polissemia? Arbítrio? Acho melhor você suspender a birita, hein...

- Meu caro, voltando à sua sugestão, de que eu vá dirigir um Uber. Toda profissão é digna. Indigno é você ser impedido de exercer sua profissão porque o governo de turno, legitimado por muitíssima gente que pensa como ele, você inclusive, decide que sua atividade profissional não vale para nada, ou melhor, que sua atividade profissional é “perigosa” porque “faz pensar” e pensar dá trabalho. Vivemos um período de mediocridade intelectual, de “cultura do GPS”, de anti-intelectualismo, desprezo pelo conhecimento e irracionalidade. Nelson Rodrigues, meu reacionário favorito, tinha razão: “os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. 

- Nossa, que mau humor. A gente tem que torcer a favor, tudo em nome do Brasil, pra frente Brasil! Pensando, morreu um burro. Desce mais uma cerveja, compadre.



Comentários

Anônimo disse…
Que texto gostoso de ler, me lembrou Verissimo, Ubaldo e Cony, mas acho que ninguem mais se lembra de imortais hoje em dia.