- Eu não entendo o porquê de todo esse fuzuê com a
assinatura do decreto que altera a regulamentação do registro, posse e
comercialização de armas de fogo e munição. A partir de agora, o cidadão de bem,
enjaulado atrás de grades e cercas eletrificadas, vai poder se proteger da
bandidagem que anda livre, leve e solta pelas ruas. Bandido bom é bandido
morto. Tá com pena do vagabundo, leva pra casa. Direitos Humanos é coisa de
esquerdopata, comunista, gente malnascida e malcomida. E tem mais: não é
qualquer um que vai poder comprar uma pistola, não. Se você ler o decreto sem
aquela má vontade, você vai ver que apenas “residentes em áreas urbanas com elevados
índices de violência, assim consideradas aquelas localizadas em unidades
federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil
habitantes, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018,
produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública”.
- Pois é. Saca só a “pegadinha”. De acordo com o mesmo
Atlas da Violência 2018 citado no decreto assinado pelo presidente, a taxa de
homicídios no Brasil, em 2016, foi de nada mais, nada menos, do que 30,3 por
cada cem mil habitantes. Não há UMA
ÚNICA unidade federativa com índices inferiores a dez homicídios para cada
cem mil habitantes, algumas delas, especialmente nas regiões norte e nordeste
do país, em que o índice supera a marca de cinquenta. Ou seja, digníssimo, TODOS OS RESIDENTES EM ÁREAS URBANAS do
país estão aptos a requerer a posse de armas de fogo. E tem mais. Ainda de
acordo com o Atlas, em 2016 foram cometidos 62.517 assassinatos no país, trinta
vezes mais do que na Europa, uma média de 153 vidas perdidas violentamente a
cada dia, sendo que 71% destes homicídios foi consequência de perfuração por
bala.
- Mas eu li no Facebook que, nos Estados Unidos, há
cerca de duzentos e setenta milhões de armas, praticamente nove em cada dez
norte-americanos é dono de uma arma de fogo e, ainda assim, o número de mortes
causado por este tipo de “instrumento” não passou dos onze mil em 2016. Ou
seja, nos Estados Unidos, morreram seis vezes menos gente do que Brasil, embora
o arsenal bélico de posse dos cidadãos do Grande Irmão do Norte seja
infinitamente superior. Concluímos, portanto, que, quanto mais armas à
disposição dos indivíduos, menos assassinatos são cometidos porque o vagabundo
vai pensar duas vezes antes de fazer besteira. E nem adianta vir com aquele
papo furado dos massacres em escolas, tipo Tiros em Columbine, porque isso é
exceção à regra, coisa de desajustados sociais, acontece “once in a blue moon”.
Digamos que é um “efeito colateral” de um bem maior. Resumindo: quanto mais
armas, menos crimes e mais segurança; quanto menos armas, mais crimes e mais
insegurança.
- Bem, diga isso para os pais das vítimas dos
assassinos de Columbine, talvez eles pensem diferente. De qualquer forma, a
relação causa e efeito, mais armas equivalendo a menos crimes, é falaciosa.
Veja o caso do Japão. Se você quer comprar uma arma no Japão é preciso
paciência e determinação. É necessário um dia inteiro de aulas, passar numa
prova escrita e em outra de tiro ao alvo com um resultado mínimo de 95% de
acertos. Também é preciso fazer exames psicológicos e antidoping. Os antecedentes criminais são verificados e a
polícia checa se a pessoa tem ligações com grupos extremistas. Em seguida,
investigam os seus parentes e mesmo os colegas de trabalho. A polícia tem que
ser informada sobre onde a arma e a munição ficam guardadas - e ambas devem
estar em locais distintos, trancadas. Uma vez por ano a polícia inspecionará a
arma. Depois de três anos, a validade da licença expira e a pessoa é obrigada a
fazer o curso e as provas de novo. O resultado é um índice muito baixo
de porte de armas. A polícia japonesa disparou apenas seis tiros em todo o país
em 2015 e a taxa de homicídios ficou em 0,73 para cada cem mil habitantes. Resumindo
e seguindo a sua lógica: menos armas, menos crimes.
- Mas o uso das
armas de fogo será reativo, tipo Lei de Newton, ação e reação, legítima defesa.
Inclusive, de acordo com o decreto presidencial, “na hipótese de residência habitada
também por criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, apresentar
declaração de que a sua residência possui cofre ou local seguro com tranca para
armazenamento”. E é perfeitamente compreensível a possibilidade de registro de QUATRO armas de fogo por cada cidadão
de bem. Imagine que o bandido entre pela cozinha e você está na sala, é
necessário ter uma arma malocada na cristaleira; se o marginal entrar pela
porta da frente, pela sala, é importante ter uma arma sobressalente no quarto
do casal; se ele entrar pelo quarto do meu filho, é fundamental outra arma
sobressalente no armário do banheiro. Fora isso, é uma garantia contra lapsos
de memória. A gente não esquece o guarda-chuva em casa e cai o maior toró e a
gente se molha todo e acaba comprando dois, três, quatro guarda-chuvas de
reserva? A gente não esquece a caneta Bic no trabalho e compra um monte de
canetas Bic de reserva? A gente não esquece a chave de casa? A chave do carro?
Então...
- Digamos que cada cidadão de bem realmente deposite
seu pequeno arsenal num “cofre ou local seguro com tranca para armazenamento”.
Você acha que o bandido, ao invadir a residência, contará até vinte, como se
estivesse numa brincadeira de “pique esconde”, em nome do fair play e da
igualdade de condições tal qual nos duelos do faroeste? Você não acha que o
bandido, imediatamente após invadir a residência, obrigará o cidadão de bem a
leva-lo até o cofre para que roube não só possíveis bens de valor quanto a
própria arma de fogo? Entende que a arma adquirida legalmente entrará no
mercado ilegal e o tiro “sairá pela culatra”? Você não percebe que, sabendo que
o cidadão de bem pode estar armado, o bandido não “pagará pra ver”, não dará
“colher de chá” porque “seguro morreu de velho” e que é preferível “prevenir do
que remediar”, atirar primeiro e perguntar depois? Sem falarmos no uso
discricionário indiscriminado, sem qualquer preparo técnico e emocional para o
manejo correto da arma de fogo em discussões de trânsito, no bar, por ciúmes da
namorada ou do namorado, da esposa ou do marido, por racismo, por homofobia,
por “atitude suspeita” ou simplesmente porque o sujeito “acordou de ovo
virado”. Fora os “acidentes” domésticos e suicídios – nos Estados Unidos, em
2016, metade das mortes por armas de fogo foi por suicídio.
- Não me venha com a balela de
que o Estado de Direito soberano moderno se define pelo monopólio legítimo da
força. O Estado moderno faliu, retornamos à idade das trevas, do “olho por
olho, dente por dente”, do fazer justiça pelas próprias mãos. Farinha pouca,
meu pirão primeiro. Cada um por si, deus por todos. Prefiro a barbárie. Teoria
da evolução? Tô fora.
- Tem razão. Desculpe-me a
arrogância. Agora, por gentileza, poderia guardar o “trezoitão”?
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