Morto de fome


O jogo chegava ao seu final, faltava pouco mais de um minuto para esgotar-se o tempo regulamentar. A seleção venezuelana de futebol sub-20 – para os ignorantes do ludopédio: formada apenas por jogadores com menos de vinte anos – vencia a seleção chilena por dois a um em partida válida pelo Campeonato Sul-Americano de Futebol que está sendo disputado no Chile. Possivelmente na última jogada do ataque, na tentativa desesperada de chegar, ao menos, ao empate no placar, o jogador chileno invade a pequena área venezuelana, mas é desarmado pelo defensor que, num “carrinho” legítimo, coloca a bola para escanteio. Neste momento, as câmeras que transmitiam a partida focalizam o jogador chileno, que brada em direção ao adversário que lhe desarmou a jogada:


- Seu morto de fome! Seu morto de fome!

Diante da repercussão negativa do gesto cruel e desumano, o jovem chileno publicou, nas redes sociais e na página oficial da Associação Nacional de Futebol Profissional do Chile, uma carta – possivelmente escrita pela assessoria de comunicação, cheia de lugares comuns - em que, vertendo lágrimas de crocodilo, pede “sinceras desculpas” tanto ao colega de profissão quanto ao povo venezuelano e insiste que “de forma alguma minha intenção foi denegrir ou insultar o povo venezuelano”. Imagina se fosse, não é mesmo?

A fala do jogador chileno não foi um lapso, um ato falho, ele não “falou sem pensar”, sabia muito bem o que gostaria de dizer e tinha absoluta consciência do dano moral que poderia causar no adversário, transformado em inimigo a ser abatido até a morte – morte por fome.  Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), em 2017 havia mais de oitocentos e vinte milhões de indivíduos passando fome no mundo, e quase quarenta milhões deste total estavam na América Latina. Muitos chilenos, sem dúvida alguma.

Quando jovens com menos de vinte anos de idade tripudiam sobre a desgraça alheia, rindo da miséria e da desnutrição de outros seres humanos, percebemos que algo vai mal, muito mal na sociedade. Maldade. Crueldade. Violência. Desumanidade. Sadismo. Egoísmo. Individualismo. E isto não se restringe ao Chile, obviamente. Aqui no Brasil, quem nunca ouviu “gente de bem” sugerir a separação do Nordeste, causa de todos os males sociais, lugar de gente “miserável e ignorante”?

O irônico disso tudo é que jogadores de futebol são oriundos, geralmente, de contextos socioeconômicos bastante adversos. Procuram no futebol uma saída para a miséria, a falta de perspectivas no mercado de trabalho, a cooptação pelo tráfico de drogas. Imagino ser muito tênue a linha que separa o jovem jogador, que ainda está procurando um lugar ao sol e sonha em jogar num grande clube europeu, de outro que não teve a mesma sorte e vaga pelo centro de Santiago mendigando moedas para matar a fome. É a exceção que confirma a regra, o ponto fora da curva.

Tão terrível quanto a miséria física é a miséria moral. E essa, o dinheiro não compra.  




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